Folha de S. Paulo


Feliz 450º Aniversário, Shakespeare e também Marlowe

Se Shakespeare tivesse sido assassinado ainda jovem, em vez de Marlowe, alguém ainda se lembraria dele? Apresentamos os argumentos a favor do escritor rival

Se por acaso você estivesse em Canterbury no dia 26 de fevereiro, poderia ter visto algo incomum: um grupinho de pessoas fazendo uma vigília silenciosa em volta da estátua em memória de Christopher Marlowe. Era o exato 450º aniversário do dia do batismo dele na igreja de Saint George, na cidade.

Seria desculpável se você tivesse deixado a data passar em branco. Este ano o destaque é todo para outro 450º aniversário: o de William Shakespeare, em abril. Este será comemorado com muito mais pompa. A Royal Shakespeare Company vai encenar todas as peças de Shakespeare entre agora e 2019. Stratford-upon-Avon o está homenageando com uma versão cara da tradicional parada de aniversário, que, este ano, lança um novo evento anual descrito como Semana de Shakespeare. Paris e Weimar programaram eventos acadêmicos.

Os 450 anos de Marlowe não estão passando totalmente despercebidos: a jovem companhia teatral Fourth Monkey está criando produções em Canterbury de "Doutor Fausto", "O Judeu de Malta" e "O Massacre de Paris", esta última no ambiente arrepiante da cripta da catedral, e a Marlowe Society está promovendo palestras e eventos. Em Cambridge, a Marlowe Dramatic Society, comandada por estudantes, lançou um ano de comemorações. Mas o contraste é marcante, especialmente quando se levam em conta as surpreendentes semelhanças entre os dois aniversariantes.

Shakespeare e Marlowe nasceram em 1564, com apenas meses de diferença entre um e outro. Ambos vieram de famílias provincianas humildes (o pai de Marlowe fabricava sapatos, e o de Shakespeare, luvas). Os dois se beneficiaram da grande invenção da era Tudor que foi a "grammar school" –escolas que ensinavam línguas clássicas, preparando os alunos para a universidade. Depois da escola, seguiram caminhos diferentes: Marlowe ganhou uma bolsa de estudos para Cambridge, enquanto Shakespeare, que engravidou uma mulher local aos 18 anos, se preparava para encarar a paternidade. Mas, com 20 e poucos anos, ambos já viviam em Londres e escreviam para o teatro. Juntos e como rivais, eles transformaram os palcos elisabetanos.

Shakespeare viveu até a idade relativamente avançada de 52 anos, tornou-se empregado real bem pago e aposentou-se para viver de seus imóveis em Stratford. Marlowe não teve sorte igual: foi morto aos 29 anos numa infeliz disputa sobre a conta a pagar numa estalagem, em Deptford, em maio de 1593.

Mas será que é apenas isso? Foi por essa razão que Shakespeare se tornou o poeta nacional britânico, o dramaturgo mais representado e traduzido do mundo? E que Marlowe foi relegado à condição de escritor relativamente menor, seus poemas mal sendo lidos fora de universidades, suas peças apenas ocasionalmente encenadas?

"É um mistério", admite a acadêmica Emma Smith, que recentemente editou um volume de ensaios sobre Marlowe para a Cambridge University Press. Quando conversamos, ela está se preparando para fazer uma palestra anual na faculdade em que Marlowe estudou, a Corpus Christi, em Cambridge. "Há muitas razões pelas quais estamos mais familiarizados com Shakespeare. Mas é quase como se tivéssemos esquecido de ouvir Marlowe. É como se não tivéssemos espaço para os dois."

Somos seletivos em relação ao que vemos de Marlowe. Tome-se o caso do assassinato dele, por exemplo, que atraiu mais que sua parcela justa de especulações. A julgar pela simples quantidade de romances policiais baseados no acontecimento, não nos cansamos dos detalhes forenses, dos personagens dúbios envolvidos, das especulações sobre quem o matou, do como e do porquê –e isso sem levar em conta as teorias mais tresloucadas, segundo as quais Marlowe teria de alguma maneira falsificado sua própria morte.

Também temos dificuldade em livrar-nos de duas outras obsessões: que Christopher Marlowe teria sido gay e que teria sido espião, como algum antecessor Tudor longínquo dos chamados "Cambridge Five" (Kim Philby e outros quatro britânicos que espionaram para a URSS durante a Segunda Guerra Mundial). O trabalho que ele fez para o governo de Elizabeth 1ª é conhecido: o fato de ele não ter se qualificado para o Mestrado de Artes em 1587 foi perdoado pelo Conselho de Assessores da Rainha, que, empregando um jargão oficial enigmático, declarou que ele tinha "prestado bons serviços a Sua Majestade". Mas as evidências sobre suas preferências sexuais são envoltas em incerteza. A sugestão de que ele teria sido gay se deve principalmente a uma carta escrita pelo informante traidor Richard Baines, segundo o qual Marlowe dizia que "aqueles que não amam o Tabaco e os Rapazes são tolos". Como a insinuação de Baines que o dramaturgo era ateu (algo consideravelmente mais provável), foi uma das muitas acusações que tiveram por objetivo sujar sua reputação. Está longe de ser uma prova conclusiva.

E todas essas conjeturas, argumenta Smith, têm o hábito de passar à frente daquilo que faz Marlowe ser importante: seus escritos. "O trabalho dele é tão épico, tão inovador", diz ela. "No teatro elisabetano, eram os versos de Marlowe que todo o mundo conhecia."

Antes mesmo de deixar Cambridge ele tinha reinterpretado uma peça de Virgílio –"Dido, Rainha de Cartago"–, incluindo-a junto com seus estudos. Em 1587, seu épico "Tamburlaine the Great", sobre um obscuro bandido de Samarcanda que acabou por dominar a Ásia central, conquistava o público teatral londrino com seu protagonista fascinante e sua trama que abrangia o mundo. "Tamburlaine" foi a primeira oportunidade real que Marlowe teve de exibir o que Ben Jonson mais tarde descreveria como sua "força poderosa", os musculosos versos brancos que se tornariam sua marca registrada. "Das veias saltitantes dos espirituosos rimadores", diz o prólogo, derramando escárnio juvenil sobre os autores mais velhos e supostamente melhores que Marlowe:

"E conceitos como os pagos por palhaços,
Os conduziremos à nobre tenda de guerra
Onde ouvireis o cita Tamburlaine
Ameaçando o mundo em termos assombrosos
E flagelando reinos com sua espada conquistadora."

As plateias enlouqueceram. Um segundo capítulo saiu pouco depois.

Marlowe também estava fazendo uso escandaloso de sua educação recebida na "grammar school", completando outra tradução clássica, desta vez dos poemas eróticos "Amores", de Ovídio, que mais tarde seria proibida por seu conteúdo "indecoroso". Em seguida, ele começou a escrever "Doutor Fausto", uma visão fascinante do mito do homem que vende a alma por conhecimento. Em 1592, já tinha escrito "O Judeu de Malta", outra história sobre um desajustado que tenta obter mais do que pode, Barabas, que sonha com "riquezas infinitas num cômodo pequeno", em suas palavras. Possivelmente a mais sardônica das peças de Marlowe, o texto se compraz cruelmente na vingança perpetrada pelo herói contra os cristãos que convertem sua casa num convento.

Mais peças saíram em sucessão tão rápida que é difícil datá-las. Por volta de 1592 foi a vez da politicamente carregada "Eduardo II", sobre um rei cujas fraquezas –notadamente a tendência a ter favoritos– eram comparadas às da própria Elizabeth 1ª. Em 1593, Marlowe se aproximaria mais ainda da vida real com "O Massacre em Paris", um texto dramático e documental, violento mas perigosamente engraçado sobre o massacre do Dia de São Bartolomeu de 21 anos antes.

No recém-reconstruído Teatro Marlowe de Canterbury, Andrew Dawson está dirigindo "Massacre" com um elenco de alunos que ensaiam com a companhia Fourth Monkey. Quando os visito, estão ensaiando uma das cenas mais sangrentas, em que o maquiavélico Duque de Guise executa um bando de protestantes. Dawson fica fascinado com a contundência da peça, ainda hoje. "Marlowe trata de temas que nos parecem totalmente contemporâneos: a violência sectária e o que vem depois. Nos faz pensar na Síria ou na África central."

É também o dinamismo juvenil do que Marlowe realizou que chama a atenção: sete peças em cinco anos, todas inovadoras, várias delas obras-primas indiscutíveis, todas escritas quando ele estava na casa dos 20 anos. Nessa idade, Shakespeare tinha escrito apenas três ou quatro das peças que conhecemos dele, todas relativamente menores. É impossível deixar de pensar que, se fosse Shakespeare quem tivesse sido apunhalado em Deptford naquele dia, ele mal mereceria uma menção na história do teatro inglês. Marlowe, em contraste, já tinha inscrito seu nome no rol dos grandes.

Os paralelos entre os dois escritores alimentaram uma especulação inevitável: que eles teriam sido a mesma pessoa. Embora sejam menos numerosos que os que argumentam em favor do Conde de Oxford ou de Francis Bacon, especialistas em Marlowe já tentaram argumentar que este teria de alguma maneira sobrevivido e passado a escrever sob o pseudônimo de Shakespeare. De modo farsesco, conseguiram até introduzir um ponto de interrogação ao lado da data da morte de Marlowe no memorial a ele na Abadia de Westminster (imagina-se que o punhal teria sido falso, e o médico-legista, também).

Mas não é preciso acreditar em teorias conspiratórias improváveis para observar os paralelos entre os dois dramaturgos. Muitas das peças de Shakespeare tratam de questões já formuladas por Marlowe. Pense em "Ricardo II", um sósia Plantageneta de "Eduardo II"; ou em "O Mercador de Veneza", que retoma a farsa cáustica de "O Judeu de Malta", convertendo-a a em algo que se aproxima de uma tragédia. "Hamlet" contém muitos ecos de Marlowe, mais obviamente na semelhança entre o Príncipe da Dinamarca e Fausto –ambos estudantes de Wittenberg com ideias que transcendiam suas esferas–, mas também na trupe de atores viajantes, cuja peça "O Assassinato de Gonzago" parece um aceno ao estilo sonoro de Marlowe (um personagem chamado Gonzago aparece em "O Massacre em Paris"). Aqui, como tão frequentemente é o caso, o tom de Shakespeare muitas vezes é difícil de decifrar –situado em algum lugar entre a paródia e a homenagem sentida.

Em 1593 Shakespeare publicou o agridoce "Vênus and Adônis", um poema narrativo deliciosamente sensual sobre a deusa do amor que não consegue seduzir um belo rapaz. O poema tornou-se seu título mais vendido. Mas Marlowe, logo depois, produziu seu próprio texto ovidiano sobre o amor tragicamente negado, "Hero and Leander". Mais uma vez a vida e a arte se entrelaçam de modo estranho. Enquanto a morte de Marlowe deixou "Hero" inacabado, "Vênus", de Shakespeare, com seu retrato culminante de um belo jovem que tem um fim sangrento, apareceria nos quiosques de livros justamente quando a notícia do assassinato de seu rival explodia em Londres.

Algo que parece a referência mais direta feita por Shakespeare é também, caracteristicamente, a mais opaca: uma menção espectral em "Como Gostais". O tolo Touchstone, meditando sobre as instabilidades da fama, observa que "quando os versos de um homem não podem ser entendidos... isso mata o homem melhor que uma grande conta cobrada num cômodo pequeno", algo que sobrepõe um verso de "O Judeu" à briga sobre a conta que resultou na morte de seu autor. A crítica Anne Barton escreveu: "Quase nos indagamos se as palavras tinham a intenção de evocar a imagem de Marlowe para os espectadores no Globe, ou se elas teriam representado um rito de memória puramente pessoal".

O livro de Jonathan Bate, "The Genius of Shakespeare", de 1997, apresenta um argumento ainda mais intrigante: que, embora haja pouca dúvida de que os dois fossem homens distintos, a morte de Marlowe tenha dado a Shakespeare o espaço imaginativo necessário para amadurecer e tornar-se um grande dramaturgo. Mesmo passados anos do fim pouco edificante de seu rival, parece que Shakespeare não conseguia tirar totalmente da cabeça a imagem do grande homem –e da dívida que tinha com ele.

Fico curioso para saber se Emma Smith fantasia sobre o que poderia ter acontecido se Marlowe tivesse vivido por mais tempo. Poderíamos agora ter uma Royal Marlowe Company e festivais Marlowe? Ela faz uma pausa diplomática. "Especulações que contrariam os fatos sempre são interessantes. Mas Marlowe poderia ter mudado, também. É um pouco como Sylvia Plath, não? Sabemos que sua vida foi curta, e interpretamos tudo com base nisso."

Finalmente as plateias estão tendo a oportunidade de decidir por elas mesmas. No ano passado a companhia itinerante Headlong fez uma versão experimental de "Fausto". O National Theatre montou um "Dido, Rainha de Cartago" espirituoso em 2009 e no ano passado lotou o Olivier com a bombástica produção de "Eduardo II" dirigida por Joe Hill-Gibbins. O Shakespeare's Globe produziu "Fausto" em 2011, e a produção atual de "Doctor Faustus" da Rose on Bankside está com lotações esgotadas. O diretor artístico da Fourth Monkey, Steve Green, tem ambições para "Tambourlaine" depois que a temporada de aniversário se encerrar.

"Christopher Marlowe precisa de um público maior", ele argumenta. "Ele é tão visceral, tão direto. Estamos à procura de vozes ousadas no mundo contemporâneo, e não há muitas tão ousadas quanto a dele."

Tradução de Clara Allain


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