Folha de S. Paulo


Leia "Teoria do Cão", conto inédito de Rodrigo Naves

SOBRE O TEXTO Este conto inédito faz parte do segundo volume de prosa de Rodrigo Naves. O livro "A Calma dos Dias", a ser lançado em março, pela Companhia das Letras, segue a trilha da elogiada estreia do crítico de arte na ficção. A concisão da prosa, visível em "O Filantropo", de 1998, também marca a nova reunião de textos. Na nova obra, no entanto, Naves abre mais frestas para o convívio de diferentes gêneros literários. Poesia, conto e ensaio se costuram, numa busca do denominador comum entre uma breve história de um vira-lata e uma pensata sobre a übermodel Gisele Bündchen.

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Jacobina era um mendigo do bairro a quem me afeiçoara havia muitos anos. Todos os dias trocávamos algumas palavras: conselhos recíprocos, novidades, palpites sobre o tempo. Dava-lhe dinheiro com regularidade, que ele aceitava quase como o pagamento de uma dívida. Ele vivia com Coronel, um vira-lata em cuja pelagem indefinida convergiam muitas linhagens de cães. O bicho não era dado a expansões, mas aos poucos cedeu a meus afagos. Jacobina e Coronel passavam o tempo todo juntos. À noite dormiam colados um ao outro, em meio ao ninho de papelão e cobertores baratos que os agasalhava.

Reprodução

A morte de Jacobina não me deixou escolha: levei Coronel para casa e procurei ocupar o lugar que o mendigo tivera em sua vida

O animal recusou-se terminantemente a dormir na área de serviço do apartamento: arranhava a porta, gania. Resolvi então arrumar sua cama ao pé da minha. Por uns dias ele aceitou a nova situação. Um dia, despertei com o cachorro a meu lado. E não houve jeito de reconduzi-lo ao lugar anterior.

O pior, porém, ainda estava por vir. Em pouco tempo Coronel teimou em voltar para o chão e não sossegou enquanto não lhe fizesse companhia. Soube responder estoicamente às novas circunstâncias e em poucos dias já me sentia à vontade na acomodação precária.

Poucos meses depois comecei a perceber mudanças no comportamento de meu companheiro. Sentia-o intranquilo, como se os limites de meu apartamento o oprimissem. O animal não tinha sossego e rodava pelos ambientes à procura de uma saída. Uma manhã, ao retornarmos do passeio matinal, mal pude contê-lo. Coronel queria voltar à rua de todo modo. Tornara-se até violento.

Não foi uma escolha fácil. Por fim cedi a seus apelos. Hoje vivemos sem nada, à mercê da caridade alheia. Tratamos com afeto aqueles que nos ajudam. Não me arrependo um só momento pela decisão tomada. Entendo o ar de compaixão dos homens e mulheres que zelam por nós. E nossas faces maltratadas pelo tempo quase não deixam transparecer o que sentimos por eles.

RODRIGO NAVES, 59, é crítico e professor de história da arte. É autor de "A Forma Difícil" e "O Vento e o Moinho" (ambos pela Companhia das Letras).

RODRIGO BIVAR, 32, é artista plástico.


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