Folha de S. Paulo


Duas horas com Stephen Hawking

RESUMO Em visita à Universidade de Cambridge, físico argentino entrevista o cientista mais popular da atualidade. Um retrato da vida e do pensamento de Stephen Hawking, que voltou ao noticiário nesta semana ao negar, em novo artigo, a existência dos buracos negros, contrariando conclusões de 40 anos de suas próprias pesquisas.

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Os corredores dos pagodes modernos que compõem o Centro de Ciências Matemáticas da Universidade de Cambridge convidam ao assombro. No primeiro andar, uma porta se destaca em meio à coreografia confusa criada pela infinidade de salas idênticas. É a única que não tem maçaneta; abre-se com um código numérico, e nela ainda se veem quatro furinhos nos quais, até há pouco, parafusos sustentavam uma discreta placa dourada, com 17 caracteres negros gravados em tipografia clássica, em letras maiúsculas, dizendo "LUCASIAN PROFESSOR".

A placa percorreu uma breve distância até parar na porta de Michael Green, um dos pais da teoria das cordas. O mesmo rótulo tinha sido fixado, em 1669, à porta de um jovem professor universitário de apenas 26 anos que respondia pelo nome de Isaac Newton. A partir daí, ser titular da cátedra Lucasiana converteu-se em distinção superlativa, legendária, compartilhada por gigantes da história da ciência. Como aquele que me aguarda atrás da porta da sala B1.07, Stephen William Hawking.

Ricardo Cammarota

Se um encontro com Hawking é sempre aguardado com ansiedade máxima, a minha ansiedade se viu redobrada pela frustração da primeira tentativa.

Algumas semanas antes, eu tinha visita marcada à sua casa, mas um problema de última hora causou seu cancelamento. Foi preciso trocar o ambiente sóbrio e acolhedor da residência de Hawking pelo de sua sala de trabalho, luminosa e moderna.

Em seu lar, eu o teria encontrado, como anos antes, mais descontraído, diante de estantes de madeira, nas quais livros convivem com desenhos que lhe são enviados por dezenas de crianças do mundo todo e com algumas primeiras edições que ele coleciona, e ouvindo Wagner. "Ninguém conseguiu, nem antes nem depois dele, transmitir tanta emoção com a música."

DOENÇA

Como se sabe, Stephen Hawking sofre de uma doença degenerativa que o imobilizou quase por completo. Não obstante essa deficiência grave, cujos primeiros sintomas apareceram na época de sua tese de doutorado, quando completou 21 anos, ele conseguiu desenvolver uma carreira científica que o elevou ao Parnaso dos maiores físicos teóricos da segunda metade do século 20.

Para dar a dimensão de sua importância como cientista, serei categórico: boa parte do que sabemos quanto aos aspectos teóricos mais fundamentais acerca da origem do universo e seus mais misteriosos e monstruosos habitantes, os buracos negros, é obra dele.

O prognóstico habitual para os pacientes com esclerose lateral amiotrófica é de dois ou três anos de vida. A ponto de jogar a toalha, Hawking se apoiou em três pilares: o amor de sua primeira mulher, Jane Wilde; o incentivo intelectual que foi conhecer o físico matemático Roger Penrose; e, não menos importante, um aspecto de sua personalidade que se fará notar neste encontro: sua rebeldia impetuosa, obstinada e por vezes presunçosa. A rebeldia de alguém que vê a ciência "como uma disciplina não apenas racional mas também romântica e passional".

Seu caráter indômito o levou a enfrentar a autoridade acadêmica da época, Fred Hoyle, e sua "teoria do estado estacionário" (segundo a qual o universo, em permanente expansão, não se dilui graças à criação contínua de matéria), que era vista como alternativa promissora à então infamada teoria do Big Bang (cujo nome, paradoxalmente, foi cunhado por Hoyle).

Apesar de sua dificuldade crescente para escrever ou caminhar, Hawking publicou uma série de trabalhos cujo ápice foi um artigo assinado com Penrose, em janeiro de 1970. Nesse texto, eles demonstraram matematicamente que eventos em que o espaço e o tempo nascem e morrem, como o Big Bang e os buracos negros, não apenas são prováveis na teoria da relatividade geral como são simplesmente inevitáveis. Os cientistas só se encontraram cara a cara uma vez durante o processo de redação do que hoje se conhece como o "teorema da singularidade".

CASCA DE NOZ

Pouco antes, Arno Penzias e Robert Wilson tinham descoberto acidentalmente que o universo emitia, a partir de toda e qualquer direção, uma radiação térmica, indicação de que, levando em conta que a expansão produz resfriamento, ele teria de ter sido menor e mais quente no passado. Se regredíssemos no tempo tanto quanto a imaginação nos permitisse, chegaria um momento em que o universo inteiro caberia numa casca de noz e que sua temperatura seria altíssima. O Big Bang, como fruto desse teorema e dessas observações, adquiriu desde então status de teoria científica.

O trabalho feito com Penrose bastaria para que Hawking conquistasse um lugar na história da física. Mas suas contribuições mais características têm a ver com os buracos negros, criaturas fantásticas cuja história é fascinante.

Sua descoberta matemática foi feita por Karl Schwarzschild, que completou os cálculos nas trincheiras do front russo na Primeira Guerra, pouco após Einstein publicar a teoria da relatividade geral. Schwarzschild não chegaria a saber que, por um quarto de século, seus resultados seriam recebidos como uma extravagância. Algo tão excêntrico quanto o pênfigo
paraneoplásico, doença autoimune que o mataria meses mais tarde.

Em 1939, Robert Oppenheimer e Hartland Snyder demonstrariam que uma estrela suficientemente pesada poderia implodir devido à atração gravitacional, colapsando até chegar ao estado descrito por Karl Schwarzschild.

Muitos outros físicos contribuiriam com pistas relevantes. Mas a mudança que fez com que esses seres mitológicos, cuja força gravitacional é tão intensa que nem sequer a luz consegue escapar, fossem considerados como entidades possivelmente reais deve muito a John Archibald Wheeler, que em 1967 os chamou buracos negros.

Nessa época o jovem doutor Stephen Hawking começava a domesticá-los, armado com papel e lápis, ao mesmo tempo em que sua mulher, Jane, se ocupava de Robert, seu recém-nascido primogênito.

Já confinado a uma cadeira de rodas, Hawking viu nascer sua filha Lucy, cuja chegada auguraria outras alegrias: pouco depois ele descobriu que os buracos negros deviam ter entropia, conceito estatístico associado a sistemas compostos. Mas, diferentemente do que ocorre em todos os sistemas naturais conhecidos, sua entropia parecia residir em sua fronteira, e não no buraco negro em si.

Toda a informação se encontraria, portanto, na superfície que o rodeia, como uma lata de alimento em conserva que não se pode abrir, mas cujos detalhes podemos acessar pela leitura do rótulo. De acordo com o estabelecido então pelo cientista, os buracos negros seriam como hologramas.

As contribuições teóricas de Hawking dotaram de substância física esses entes misteriosos que, segundo ele, se emitissem radiação, evaporariam, levando junto o que haviam deglutido. Isso causa um conflito frontal com as leis da física quântica: a informação, como a energia, não pode ser perdida. Se os buracos negros evaporam sem deixar rastro daquilo que engoliram, tanto faz se o livro era uma antologia poética de Vinicius de Moraes ou se era o mesmo livro, mas com páginas em branco.

Agora, depois de 40 anos de intensos debates, durante os quais Stephen Hawking ajudou a dar entidade aos buracos negros, o físico britânico a nega.

Ele divulgou sua nova posição, na semana passada, em um artigo na plataforma arXiv, que acolhe trabalhos antes de sua publicação em revistas científicas.

No texto, Hawking sugere que o chamado horizonte dos eventos, fronteira matemática a partir da qual toda e qualquer coisa desapareceria dentro de um buraco negro, simplesmente não existe. Se não há horizonte de eventos, não há buracos negros! Para ele, em vez de horizonte de eventos, haveria um "horizonte aparente", capaz de capturar a luz por um tempo.

O processo pelo qual o buraco negro engoliria matéria seria assim tão caótico que, ainda que a informação não se perdesse, estritamente, reconstrui-la seria tão difícil quanto, digamos, prever que tempo vai fazer em São Paulo no instante preciso em que você estiver lendo estas linhas.

O novo artigo ainda não foi revisado por outros cientistas nem apresenta fundamentação matemática para suas conclusões audazes e provocadoras. De fato, nenhuma das previsões de Stephen Hawking pôde ser comprovada.

NOBEL

Por isso ele não recebeu o Nobel. Foi, no entanto, agraciado com uma distinção ainda mais prestigiosa, a medalha Copley, prêmio científico mais antigo do mundo, outorgado pela Royal
Society de Londres desde 1731.

Hawking a recebeu em 2006, dois anos antes de Penrose. Enquanto o Nobel de Física, Química ou Fisiologia é habitualmente dividido, a medalha Copley é entregue a uma só pessoa por ano. Darwin, Einstein e Pasteur a receberam. Em 1838, numa rara ocasião em que foi difícil escolher um nome, ela foi compartilhada por Michael Faraday, um dos dez físicos mais importantes da história, e Carl Friedrich Gauss, rei da matemática.

No início dos anos 80, Hawking se propôs a escrever um livro em que pudesse explicar os conceitos avançados da física fundamental ao grande público. Recusou-se a fazê-lo com editoras acadêmicas, pois lhe interessava que o texto pudesse ser acessível a qualquer leitor. Habituado a usar uma linguagem metafórica e carregada de imagens em suas palestras, sentia-se preparado para lançar uma ponte sobre a enorme distância que separa do cidadão comum as sofisticadas teorias da física moderna, cuja expressão natural depende do idioma das matemáticas.

O lento processo de redação e correções do livro acabou dificultado por um enorme contratempo. Em meados de 1985, numa visita que fazia ao Cern (Organização Europeia para a Pesquisa Nuclear), uma pneumonia deixou Hawking à beira da morte, e foi necessária uma traqueostomia para salvá-lo.

Desde então, ele ficou mudo. Apesar disso, em 1988 saiu, finalmente, "Uma Breve História do Tempo", que catapultou a divulgação científica ao status de best-seller. O estímulo que o livro representou para que milhares de jovens se inclinassem à ciência é incalculável.

CQC

No horário novamente agendado, ali estava eu, à porta da sala de trabalho de Hawking; e, quando passei por ela, ali estava o próprio Hawking. O primeiro contato visual teve um ingrediente inesperado: o cientista mais famoso do planeta usava óculos escuros que pareciam saídos do "CQC" -lembrei-me de que era possível, pois, quando em visita a Santiago de Compostela, ele havia participado da versão espanhola do programa.

Diante do espanto que não tive como esconder, Jonathan Wood, o assistente técnico que monitora com extrema atenção o sistema através do qual Hawking se comunica, assinalou a claridade ofuscante que chegava pelas grandes janelas da sala: "Ele precisa dos óculos de sol para poder utilizar o sistema de comunicação".

Há quase três décadas, Stephen Hawking se comunica com o mundo externo por meio de um computador integrado à sua cadeira de rodas e de um programa especial com que monta suas frases, emitidas por um sintetizador de voz. Apesar dos avanços tecnológicos Hawking não quer nem ouvir falar em melhorar a qualidade do sintetizador -cuja voz, além de metálica, para o constrangimento de um professor britânico, tem sotaque americano. "Essa é minha voz", diz, com lógica arrasadora.

Até o início da década passada ele era capaz de mover os dedos de sua mão direita com agilidade suficiente para manipular um mouse. Mas, quando perdeu a mobilidade da mão, teve que recorrer ao reconhecimento de movimentos faciais. Seu assistente anterior, Sam Blackburn, concebeu um detector que sai da parte superior de seus óculos, semelhante a uma pequena lâmpada de leitura, registrando os movimentos de sua bochecha.

Com essa única maneira de clicar, Hawking não pode navegar pela tela, como antes fazia. Sua velocidade de comunicação diminuiu muitíssimo, até chegar a uma palavra por minuto. Alternativas de todo tipo vêm sendo exploradas -desde o scanning cerebral até o rastreamento dos olhos, passando por um sistema sofisticado que monitora seu rosto, aproveitando a complexidade de movimentos a seu alcance. Mas, por ora, ele continua usando esse sistema.

A perspectiva de encará-lo numa conversa tão cheia de silêncios prolongados era perturbadora. Eu o cumprimentei e me sentei ao seu lado. Ele me observou com especial atenção quando eu lhe disse que María, uma menina que ele conheceu na Galícia e que tinha recebido o diagnóstico de uma doença semelhante à dele, estava muito bem.

Reforçado pela imobilidade do resto de seu corpo, o efeito que produz o olhar de Hawking quando seus olhos claros se fixam sobre os nossos é assombroso: você tem a certeza de estar com ele e de que ele está com
você. É um breve instante de comunicação intensa.

MENU

No primeiro almoço que tivemos em Santiago de Compostela, veio à tona, devido ao menu, seu gosto pela boa carne. A imobilidade de seu rosto converte o momento da refeição numa situação difícil, e ali se manifesta sua proverbial determinação. Hawking jamais parece fazer uma opção culinária pensando em simplificar a operação de comer. Não se priva de nada. Na Galícia, não deixou de provar nenhum marisco e comeu polvo e crustáceos até se cansar.

Ao falar de comida, foi inevitável que a conversa se voltasse à qualidade da carne argentina. Assim eu soube que não é apenas da carne que ele se recorda ao pensar em meu país mas também do tango. Falei disso com ele ao entrar em sua sala de trabalho. Perguntei se havia algum outro aspecto da Argentina que tivesse chamado sua atenção e ele me respondeu da maneira mais inesperada: "O papa. Sou membro da Pontifícia Academia de Ciências e espero vê-lo na próxima reunião".

Surpreendeu-me o fato de que um agnóstico como ele tivesse optado por essa referência, quando poderia ter recorrido a tantas outras -entre elas, a de uma nova figura, que marcou a física teórica das duas últimas décadas, revolucionando aquele que talvez seja o terreno mais árido do século passado: a busca de um formalismo que compatibilize as duas grandes teorias do século 20, a física quântica e a teoria da relatividade geral.

Aos 45 anos, Juan Martín Maldacena é atualmente membro do prestigiosíssimo Instituto de Estudos Avançados de Princeton, onde Albert Einstein trabalhou -além de ser conselheiro no braço sul-americano do ICTP (Centro Internacional de Física Teórica), com sede na Unesp, em São Paulo.

Hawking o conhece bem porque, em 2003, eles fizeram juntos um trabalho em que convivem a noção de entropia gravitacional introduzida por ele e a chamada conjectura de Maldacena. De modo que poderia ter aludido a ele, em lugar do papa.

Achei interessante perguntar a alguém que viveu a condição de estrela emergente da física teórica sobre outro jovem na mesma situação. A resposta de Hawking foi tão sucinta quanto contundente: "Ele é brilhante. Muito original". Não me atrevi a contar-lhe que em 1999, na conferência anual da teoria das cordas em Potsdam (Alemanha), Maldacena e eu quase o derrubamos quando retornávamos apressados ao banquete da conferência e topamos com ele num corredor do hotel: ao abrir uma porta, foi quase por milagre que conseguimos desviar de sua cadeira de rodas.

MEIA HORA

Mais de meia hora tinha transcorrido para que obtivesse essas duas breves respostas.

O sistema de comunicação de Hawking é frágil. No canto superior direito da tela de seu computador há dois quadrados pequenos. O quadrado superior contém as letras do alfabeto. No inferior, há os números e algumas teclas de função.

Quando Hawking começa a escrever uma palavra, abre-se uma janela retangular, colada às outras, com dez palavras sugeridas, numeradas de zero a nove. O sensor preso a seus óculos detecta o único gesto que ele usa no sistema: um movimento do maxilar para a bochecha, que ativa um clique. Como não há sinais distintos para indicar vertical ou horizontal na tela, um cursor executa uma dança perpétua sobre os quadrados: para cima, para baixo, para cima...

Quando ele clica, o cursor se fixa sobre o quadro selecionado e então, devagar, começa a percorrer as linhas distintas. Uma vez escolhida uma linha, percorre cada letra ou símbolo nela. Se há um erro, é preciso esperar que o cursor reinicie a dança para, então, dirigi-lo pacientemente até o ícone que representa a função "apagar".

O modo como Hawking faz questão de escrever corretamente, sem pular uma letra ou um sinal de pontuação, é comovente. Impossível não pensar na preguiça que habitualmente se manifesta em abreviadas mensagens de texto no celular ou nas redes sociais.

Com frequência, devido à degeneração muscular ou ao cansaço, suas pálpebras quase se fecham, em um movimento que ele provavelmente não pode controlar e que em muitas ocasiões causa erros de comunicação. Embora ele tenha alguma liberdade de movimento facial, como arquear as sobrancelhas, seu gestual é limitado.

Esses movimentos sutis, quase imperceptíveis para quem não está acostumado, servem, contudo, para que Hawking se comunique com as pessoas mais próximas, para poder concordar ou discordar rapidamente, ou para comunicar-se quando não está em sua cadeira de rodas -por exemplo, quando está na cama. Ali ele também recorre ao método que usava antes de dispor de um computador, o qual é exaustivo só de imaginar: forma palavras reconhecendo letra por letra, em uma cartolina.

Há um momento em que a impressão de rigidez em seu rosto se apaga repentina e explosivamente. É quando ele desenha uma risada. Seus cuidadores, sobretudo os veteranos, conhecem seu senso de humor e captam sua gargalhada com facilidade. Nesses momentos, manifesta-se em toda a plenitude o ser humano que vive nas profundezas de seu corpo imóvel. Por outro lado, sua prostração lhe confere certo ar atemporal. É fácil esquecer que estamos diante de um homem de 72 anos.

Ao lado de Albert Einstein, Galileu Galilei está no altar pessoal de Stephen Hawking. Naquela que provavelmente seja a única concessão que faz ao pensamento mágico, Hawking intui alguma forma de causalidade no fato de ter nascido exatamente 300 anos após o 8 de janeiro de 1642, último dia na vida de Galileu.

Quando, em 2012, o homem que deveria morrer antes dos 25 anos chegou aos 70, a comemoração foi um jantar no imponente refeitório do Trinity College, o mais respeitado da Universidade de Cambridge -entre seus antigos membros, além de 32 Prêmios Nobel, figuram nomes como lorde Byron, Vladimir Nabokov, Bertrand Russell e Ludwig Wittgen-
stein. Éramos uns 250 convidados, entre os quais só um envergava o smoking como se fosse uma roupa de todo dia: o ator Daniel Craig, o James Bond. O principal ausente foi o próprio Hawking, que não pôde comparecer por problemas de saúde. Estava ali sua mãe, Isobel, com quem ele manteve uma relação muito estreita até a morte dela, aos 98, em abril passado.

APOSTA

Stephen Hawking criou o hábito de fazer apostas com seus colegas a respeito de previsões científicas. Com uma particularidade: se não me engano, ele não ganhou nenhuma. A última é muito recente: foi quando ele apostou que o bóson de Higgs jamais seria encontrado. Em 4 de julho de 2012, o laboratório Cern confirmou a descoberta ocorrida no Grande Colisor de Hádrons (LHC). Hawking rapidamente declarou-se perdedor e pediu o Nobel para Peter Higgs (o britânico de fato veio a partilhar o prêmio com o belga François Englert, em 2013).

Sempre tive a impressão de que ele sistematicamente apostava contra o que julgava mais provável, como se desafiasse a natureza a seguir por um rumo inesperado, levado por sua rebeldia obstinada e seu espírito brincalhão (não seria seu trabalho mais recente uma "boutade", um produto desse espírito?).

No caso do bóson de Higgs, por exemplo, parece-me claro que ele, como muitos físicos teóricos, desejava que não fosse encontrado para que o jogo pudesse ser aberto a novas teorias. Comento essa hipótese e, embora ele não me responda, uma gargalhada muda que se desenha em seu rosto parece me dar razão.

CULTURA POP

A presença de Hawking na cultura popular é incomum para um cientista, e poderia ser ainda maior se ele fosse alguns anos mais jovem. A julgar pelos bonequinhos que exibe no seu escritório, ele se orgulha muito das participações que fez em episódios de "Os Simpsons", "Jornada nas Estrelas" e, mais recentemente, "The Big Bang Theory".

Seu espírito lúdico é, de fato, extraordinário. Suas palestras sempre têm momentos cheios de graça, dos quais ele desfruta, prolongando seu próprio silêncio para ouvir as risadas do público. Quando, anos atrás, foi recebido pelo prefeito de Santiago de Compostela na praça principal da cidade, depois de percorrer o trecho final do Caminho de Santiago, aceitou sem pensar duas vezes minha sugestão de saudar o prefeito pelo nome, com o único objetivo de ver sua expressão de surpresa.

Enquanto esperava que Hawking respondesse às minhas perguntas, eu contemplava com a respiração contida o esforço titânico que ele fazia.

Quando falam com ele, as pessoas habitualmente ficam a seu lado, olhando para a tela do computador. Assim, em muitas ocasiões a leitura da primeira metade de uma frase já prenuncia seu final. Isso não impede que Hawking continue a lutar contra a adversidade para terminar a frase, sem erros de ortografia.

Lembrei-me do que sua filha, Lucy, tinha me dito: "As pessoas às vezes se esquecem de que meu pai tem uma deficiência grave. Estão tão acostumadas a vê-lo funcionar com a cadeira de rodas e o sintetizador de voz, a dar palestras de forma fluente e com linguagem polida, que esquecem a magnitude da luta e o esforço tremendo que estão por trás disso". Eu não poderia concordar mais.

O denominador comum da vida de Hawking tem sido o tempo. O tempo escasso que lhe deram aos 21 anos; o tempo inicial e o final, aos quais ele dedicou sua carreira científica com tanta paixão; o tempo que não transcorre, que só pode ser vivido no ponto sem retorno dos buracos negros; o da breve história, que revolucionou o conceito da divulgação científica. Os primeiros versos de "Auguries of Innocence", de William Blake, parecem escritos para ele:"Num grão de areia ver o mundo / e numa flor agreste o céu, / reter na mão o infinito / e numa hora a eternidade".

Se podemos chamar de milagrosa a conexão que Hawking, a partir de seu corpo imóvel, tem com o universo formal e abstrato da física, não é menos milagrosa sua preocupação com assuntos sociais que poderíamos supor que lhe fossem alheios ou distantes.

Sua relação com a deficiência física mudou com o passar dos anos. Durante muito tempo, Hawking não queria ser identificado com ela. Uma vez tomada a decisão de concluir seu doutorado, foi como se tivesse dado as costas à sua doença e optado por viver ignorando-a. Desafiando-a.

Quando começou a usar a cadeira de rodas, o cientista deslocava-se pelas ruas de pedra de Cambridge em velocidades temerárias. Em várias ocasiões acabou esparramado no gramado perfeitamente cortado das faculdades, obrigando os transeuntes ocasionais a transgredir as normas que proíbem que os não membros das faculdades pisem na relva, a fim de ajudá-lo a subir na cadeira outra vez.

"Eu nunca quis ter pena de mim mesmo. A deficiência era normalmente vista como algo vergonhoso a ser escondido." Ele negava tão fortemente a sua doença que nem queria ouvir falar das organizações que, nos anos 1980, trabalhavam em prol da integração das pessoas com alguma forma de deficiência.

Como todos que veem Stephen Hawking pela primeira vez, quando o conheci no Chile, em 1997, fiquei impressionado com a dignidade e a força de vontade com que ele levava sua vida adiante. Essa era uma viagem muito especial, pois o último dia da conferência ocorreria na Antártida.

"Quero fazer as coisas da melhor maneira possível. Obviamente, devido à minha deficiência, preciso de ajuda, mas sempre procurei superar as limitações de minha condição e levar a vida mais plena possível. Percorri o mundo até a Antártida e experimentei a ausência de gravidade. Algum dia, quem sabe, eu possa viajar ao espaço. Sou mais feliz hoje que antes de a doença ter se manifestado."

Conforme passaram os anos e aumentou sua dependência de sua equipe de cuidadores e enfermeiras, ao mesmo tempo em que se tornou consciente de sua posição privilegiada, Stephen Hawking converteu-se numa voz de referência na luta pela integração das pessoas com deficiências. Foi assim que, em 2012, aceitou com orgulho o convite para participar da cerimônia de abertura dos Jogos Paraolímpicos de Londres.

"O grande sucesso dos Jogos Paraolímpicos mostrou que os atletas com deficiências são como quaisquer outros atletas e devem ajudar a fazer com que as pessoas com algum tipo de deficiência sejam aceitas pela sociedade. Creio que a ciência deve fazer tudo o que for possível para prevenir ou curar as deficiências. Ninguém quer ser deficiente, se puder evitar. Espero que meu exemplo dê ânimo e esperança a outros que estejam em situações semelhantes, para que nunca desistam."

O compromisso social e político de Hawking pode ser apreciado tanto em suas declarações públicas quanto em seus silêncios escolhidos. Sempre foi defensor aguerrido da saúde pública e da necessidade de investir em pesquisa científica. Define-se ideologicamente como socialista, o que não o impediu de manifestar sua rejeição firme à guerra do Iraque sustentada pelo trabalhista Tony Blair -que ele não parece ter em muita estima.

"O futuro da humanidade e da vida na Terra é muito incerto. Corremos o risco de nos destruirmos graças à cobiça e à estupidez."

Sua sensibilidade ideológica se evidencia também quando ele aborda temas díspares e aparentemente exóticos. "A descoberta de vida extraterrestre inteligente seria o achado científico mais importante da história. Mas seria arriscado tentarmos nos comunicar com civilizações extraterrestres. Se elas decidissem nos visitar, o resultado poderia ser semelhante ao de quando os europeus chegaram à América, algo que não terminou muito bem para os nativos."

CONTROVÉRSIA

Em maio de 2013, Hawking se viu envolvido numa controvérsia. Ele havia aceitado participar de uma conferência sobre o fator humano na formação do futuro, organizada em Jerusalém em homenagem ao presidente de Israel, Shimon Peres.

No entanto, um mês e meio antes do evento ele enviou uma carta breve e discreta aos organizadores, anunciando que, após ter consultado cientistas palestinos que havia conhecido em 2006, durante uma viagem a Ramallah, tinha desistido de participar.

De algum maneira, a carta chegou ao Comitê Britânico para as Universidades da Palestina
(Bricup), de onde vazou para a imprensa; o movimento Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) apressou-se a declarar que o cientista tinha aderido à sua causa.

A missiva sucinta e respeitosa de Hawking terminava dizendo: "Se eu participasse, expressaria minha opinião de que a política do governo atual de Israel provavelmente vai conduzir ao desastre".

Tratando-se de um tema delicado para a opinião pública internacional, as críticas se intensificaram de imediato. Para piorar as coisas, num primeiro momento a Universidade de Cambridge declarou que Hawking não viajaria a Israel por problemas de saúde; horas depois, foi obrigada a se desdizer, deixando no ar a sensação de que tinha tentado ocultar a realidade.

Ninguém se deu ao trabalho de ler a declaração de Hawking e enxergá-la no contexto do pacifismo militante de alguém que já visitou Israel em outras ocasiões, recebeu a distinção científica máxima desse país, o Prêmio Wolf, e mantém vínculos estreitos com seus pesquisadores. Alguém que de maneira alguma aderiria a boicotes como os promovidos pelo BDS, que são uma negação total do diálogo.

O cientista dedicou 45 minutos de esforço comovente para me explicar sua posição; definitivamente, ele procurava contribuir com um grão de areia para o restabelecimento do diálogo entre as partes.

"Eu ia a Israel com a condição de poder dar uma conferência na Cisjordânia, porque sinto que as universidades palestinas necessitam de contatos com o exterior, mas todos os acadêmicos palestinos me disseram que eu deveria respaldar o boicote. Senti não ter ido", disse. "Se tivesse ido, teria dito que Israel precisa dialogar com os palestinos e com o Hamas, como a Grã-Bretanha fez com o IRA. Não se faz a paz falando com os amigos, mas com os inimigos. Estou satisfeito pelo fato de as conversações de paz estarem sendo retomadas. Se isso tivesse acontecido antes, teria ido a Israel."

CAVALEIRO

Chama a atenção o fato de um inglês da envergadura acadêmica de Stephen Hawking ainda não ter sido nomeado cavaleiro. Todos os cientistas britânicos de seu nível já o foram, incluindo Roger Penrose, com quem ele compartiu muitas honrarias. Há outra exceção notável: Peter Higgs. É inimaginável que isso não lhes tenha sido oferecido.

Não creio que em qualquer dos dois casos se trate de uma posição antimonárquica, já que ambos foram laureados Companheiros de Honra pela rainha Elizabeth 2ª e aceitaram a distinção.

A oferta do título de cavaleiro costuma ser levada aos candidatos por um intermediário, que deve apresentar as razões que a motivam. Hawking e Higgs são homens de princípios, que não hesitariam em recusar uma distinção se a julgassem em desacordo com seus méritos pessoais ou se a oferta lhes chegasse por um emissário que achassem inapropriado. Se a rainha da Inglaterra lê a Folha, eu a incentivo a tentar outra vez.

Antes de nos despedirmos, vamos à Potter Room para fazer as últimas fotos. Esse salão é o ponto nevrálgico do Departamento de Matemática Aplicada e Física Teórica, onde acontecem os debates, os seminários, as conferências e até os obrigatórios chás das cinco. A presença de Hawking na Potter Room já foi imortalizada em um busto -última obra do escultor inglês Ian Walters, morto em 2006.

As lâmpadas estão apagadas, e as janelas laterais produzem um jogo de luz e sombras que conferem realidade à estátua e irrealidade ao Hawking verdadeiro, que parece muito à vontade posando e se divertindo com os comentários que, com frequência crescente, geram seu sorriso franco e o olhar atento. Depois as vozes se calam, os olhares se cruzam pela última vez, e a confusão dos corredores e seu labirinto volta a tomar conta de nossos passos.

JOSÉ EDELSTEIN, 45, físico teórico argentino, é professor na Universidade de Santiago de Compostela (Espanha); publicou originalmente o relato de seu encontro com Stephen Hawking na revista "Orsai". Seu endereço no Twitter é @joseedelstein.

CLARA ALLAIN, 56, é tradutora.

RICARDO CAMMAROTA, 41, é ilustrador.

JAIME TRAVEZÁN, 50, é repórter-fotográfico peruano. Foi eleito o fotógrafo do ano, em 2012, pela revista britânica "Professional Photographer".


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