Folha de S. Paulo


Diferentes versões da vida do andarilho Jack Kerouac

RESUMO Com uma vida intensa, que se confunde com sua criação literária, Jack Kerouac (1922-69) é o escritor biografável por excelência: há mais títulos sobre ele do que livros escritos pelo autor de "On the Road". Uma das principais obras desse cunho, "O Livro de Jack", misto de mosaico de depoimentos e crítica, sai agora no Brasil.

*

No seu prefácio a "O Livro de Jack", que escreveu com Lawrence Lee, Barry Gifford observa que seu intuito era "conduzir o público à leitura dos 11 romances de Kerouac, quase sempre ignorados, e de seus demais trabalhos".

Em 1978, quando da publicação original deste "O Livro de Jack - Uma Biografia Oral de Jack Kerouac" [trad. Bruno Gambarotto, Biblioteca Azul, R$ 49,90, 496 págs.], beat e contracultura pareciam coisa do passado.

Hoje não mais. "On the Road", de Kerouac (traduzido como "Pé na Estrada" por Eduardo Bueno, com sucessivas reedições, desde 1984), se firma cada vez mais como a narrativa mais influente da segunda metade do século 20.

Outros títulos merecem ser lembrados, como "O Apanhador no Campo de Centeio", de J. D. Salinger, ou "Cem Anos de Solidão", de Gabriel García Márquez. No entanto, estes não ultrapassaram o sistema literário. Com "On the Road", Kerouac o extrapolou.

Junto com "Uivo e Outros Poemas", de Allen Ginsberg, promoveu o aparecimento dos beatniks e dos hippies. Seu chamado à aventura inspirou outros a saírem estrada afora. Foi decisivo para figuras do porte de Bob Dylan, que fugiu de casa após lê-lo; também para Francis Ford Coppola e para Lou Reed, entre tantos que integraram o cordão de autores e personalidades influenciados por Kerouac e pela geração beat.

Não obstante, desde seu lançamento, em 1957, "On the Road" vem sendo atacado por críticos, pelo culto à espontaneidade, desordem formal, apologia da libertinagem. Recebeu objeções pautadas pela correção política, que apontaram hedonismo, sexismo e imediatismo.

Os autores da geração beat chegaram a ser acusados de iletrados. Na verdade, eles foram um exemplo de crença extrema na criação literária, atribuindo-lhe valor mágico, como fonte de acontecimentos, e não só de textos.

BIBLIOGRAFIA

Felizmente, cresce uma bibliografia crítica pertinente. Ela é representada, entre outros exemplos, pelos ensaios de Howard Cunnell, Penny Vlagopoulos, George Mouratidis e Joshua Kupetz que precedem a edição de "On the Road - O Manuscrito Original [trad. Eduardo Bueno e Lúcia Brito, L&PM, R$ 24,50, 464 págs.].

Jerome Yulsman/Globe Photos
Jack Kerouac e sua então namorada Joyce Johnson em frente ao The Kettle of Fish, no Greeenwich Village, Nova York, c. 1958
Jack Kerouac e sua então namorada Joyce Johnson em frente ao The Kettle of Fish, no Greeenwich Village, Nova York, c. 1958

Junto com os ensaios, vieram as biografias. Em número de títulos, elas superam aqueles da extensa obra de Jack Kerouac. Personagem de si mesmo, com uma vida intensa que se confundiu com a criação literária, ele é o escritor biografável por excelência.

O estudo biográfico pioneiro é o de Ann Charters, "Kerouac: a Biography" [St. Martins Press, R$ 62,30, 432 págs.]. Lançada originalmente em 1973, a obra descerrou cortinas ao relatar a intrincada vida sexual do escritor e de Neal Cassady com Carolyn Cassady, Luanne Henderson e outros parceiros -inclusive Allen Ginsberg.

Charters trouxe à luz cenas como esta, ocorrida em Denver, em 1947: decidida a retornar à Califórnia, Carolyn, já companheira de Cassady, com quem se casaria e teria filhos, passa por seu apartamento para despedir-se; ao abrir a porta, encontra-o deitado em companhia de Luanne e Ginsberg, um de cada lado da cama.

Em seguida vieram outras. "Memory Babe" [University of California Press, 767 págs., esgotado], de Gerard Nicosia, é de 1983 e continua a ser a mais completa dessas biografias, como o reconhecem outros estudiosos, a exemplo de Barry Miles -seu "Jack Kerouac - King of the Beats" [trad. Roberto Muggiati, Cláudio Figueiredo, Beatriz Horta, ed. José Olympio, R$ 50, 420 págs.], de 1998, saiu no Brasil em 2012.

"Visions of Kerouac" [Ithaca Press, 235 págs., esgotado], de Charles E. Jarvis, é de 1974. O livro teve sua faísca inicial em 1968, quando, aproveitando uma estada em Lowell, cidade natal do escritor e dele próprio, Jarvis se pôs a gravar falas do alcoólatra terminal e o acompanhou pela noite, assombração percorrendo uma cidade fantasma. Já "Subterranean Kerouac" [St. Martins Press, R$ 91,70, 448 págs.], de Ellis Amburn, publicado em 1998, faz incidir o foco sobre a complicada vida sexual do escritor.

E há que lembrar os depoimentos: Ginsberg escreveu, em 1974, "Visions of the Great Rememberer" [Mulch Press, 71 págs., esgotado]; em "Off the Road" [Overlook, e-book, R$ 22,21], de 1990, Carolyn Cassady polemizou com Gerard Nicosia. Joyce Johnson, companheira de Kerouac na época do lançamento de "On the Road", publicou o premiado "Minor Characters" [Penguin, e-book, R$ 35,58] em 1984.

Por fim, "Memórias de uma Beatnik" [trad. Ludimila Hashimoto, Veneta, R$ 24,90, 216 págs], de Diane di Prima, lançado no Brasil neste ano, relata uma performance de sexo tântrico entre a poeta beat e Jack -biógrafos não sabem precisar se Di Prima ficcionalizou os fatos ou se eles fizeram tudo aquilo.

CORAL

Obra polifônica, coral de vozes díspares, mas não dissonantes, "O Livro de Jack" acompanha a vida toda de Kerouac.

Barry Gifford e Lawrence Lee partem de um amplo espectro de entrevistados, que inclui desde personagens qualificados, como Allen Ginsberg, William Burroughs e Gary Snyder, e participantes ativos, como o delinquente Herbert Huncke, até figuras secundárias, mas que trazem depoimentos reveladores: o parceiro de sinuca de Cassady, Jim Holmes, e o casal Al e Helen Hinkle (Ed e Galatea Dunkel em "On the Road").

Não há nada de panegírico: por mais que a importância de Jack Kerouac seja admitida, isso não impede críticas. Mais do que isso, há objeções a Neal Cassady, caracterizado como psicopata por Burroughs e John Clellon Holmes e detestado por ex-colegas de Denver.

Lee e Gifford, este último também autor do romance "Wild at Heart" (filmado por David Lynch), não se limitaram a ir atrás de personagens e recolher depoimentos.

Comentários e apresentações de cada capítulo compõem não só uma biografia mas uma avaliação crítica de Kerouac, que os autores souberam conduzir, abordando questões relevantes -por exemplo, seu misticismo, ou sua formação literária, com momentos decisivos como a visita dele e Ginsberg a Burroughs.

Os biógrafos esclarecem como Kerouac escrevia -espontaneamente, mas nem sempre: foi dele a iniciativa de reescrever várias vezes "On the Road", e uma de suas obras mais complexas, "Doctor Sax", foi sendo elaborada de 1948 a 1958. Corrigem a injustiça com relação ao crítico Malcolm Cowley, acusado por Kerouac de normalizar seu texto.

Mas sancionam um erro: o rolo em que datilografou "On the Road" não era de papel para telex dado por Lucien Carr: esse seria usado em outras ocasiões, mais tarde.

É claro que muita coisa relevante foi deixada de fora. Mas a crise a partir do final de 1957, o modo como Kerouac se desestruturou e seus sombrios anos finais de vida estão bem relatados.
Além da informação biográfica, há discussão literária, destacando a poesia de "Mexico City Blues" e os complexos "Visões de Cody" e "Doctor Sax".

O livro subestima, no entanto, "Os Vagabundos Iluminados" -basta confrontar com a leitura de Regina Weinreich, no prefácio do recente "Livro de Haicais" (L&PM 2013, tradução minha)- e a prosa poética de "Anjos da Desolação" (trad. Guilherme da Silva Braga, L&PM, 2010). E, principalmente, faz pouco, injustamente, de seu canto de cisne, "Vanity of Duluoz", já de 1967, quando ele estava às vésperas da morte.

A edição brasileira vem com prefácios de Walter Salles e Gifford, atualizando-a. Mas faltam as fotografias que ilustram a edição original.

Houve dificuldades com a negociação de direitos, informa o editor, e aquelas foram substituídas por outras, que deveriam ter recebido legendas. Para ver as caras de Luanne Henderson e
Herbert Huncke, ou do casal

Hinkle, será preciso baixar a edição eletrônica de "Jack's Book" ou ir à página de internet dedicada a Ginsberg (allenginsberg.org).

Foram mantidos o roteiro de pseudônimos e nomes reais dos personagens das narrativas de Jack Kerouac, além do índice remissivo e da bibliografia -mas deveriam ter sido consignados os títulos já publicados no Brasil.

VERDADE

"O Livro de Jack" remete à questão da verdade biográfica. No prefácio, Gifford provoca, citando Freud: "Para ser biógrafo, você precisa ocupar-se de mentiras, acobertamentos, hipocrisias, falsidades e mesmo apagar sua falta de compreensão, pois a verdade biográfica é impossível e, se a ela chegássemos, não poderíamos utilizá-la... A verdade não é possível, a humanidade não a merece".

Contrapõe a esse julgamento categórico um comentário de Ginsberg: "Meu Deus, é como o 'Rashomon' -todo mundo mente, e a verdade vem à tona!".

Mas a melhor resposta à questão da "verdade" é dada por Gary Snyder: "Jack era, em certo sentido, um mitógrafo norte-americano do século 20".

Seus personagens e episódios se tornariam "parte da mitologia dos Estados Unidos na qual estava trabalhando". O que importa não é reproduzir a realidade, mas sim criar novos mitos, que se projetam no mundo e o transformam.

Essa argumentação jamais seria entendida pelos que se pretendem donos de suas imagens.

Se fosse no Brasil e a família Sampas, sucessores de Kerouac, adotasse o desastrado discurso contra as biografias que dominou o noticiário nacional recentemente, boa parte da bibliografia aqui mencionada não alcançaria seus leitores. O que sobraria de "O Livro de Jack" se o personagem-tema fosse algum Roberto Carlos?

CLAUDIO WILLER, 73, é poeta, ensaísta e tradutor. Publicou "Geração Beat" (L&PM Pocket, 2009), "Manifestos 1964-2010" (Azougue, 2013) e a tradução do "Livro de Haicais", de Jack Kerouac (L&PM, 2013), entre outros.


Endereço da página:

Links no texto: