Folha de S. Paulo


Leia trecho do livro "Poder e Desaparecimento", de Pilar Calveiro

Quase todos os sobreviventes reconhecem um capturador a quem "devem" a vida, alguém que os protegeu e lhes "concedeu" a vida. Esses "doadores de vida" são os mesmos que aparecem torturando e assassinando, lançando cadáveres ao mar ou queimando-os, quer seja em depoimentos diferentes, quer seja no mesmo. O general Galtieri falou para Adriana Arce que ele "era a única pessoa que podia decidir sobre minha vida"48; e lhe deu a vida ao mesmo tempo que a tirou de muitos outros, como da família Valenzuela. Doadores de vida e doadores de morte coincidem; eles são os deuses dos campos de concentração. Sem dúvida seria possível ler esse fato como um ato humano de compensação individual para manter certo equilíbrio psicológico, mas, ao mesmo tempo, completava-se assim o exercício de um poder total, "divino". Dar e tirar a vida.

A afirmação do capitão Acosta, à qual muitos sobreviventes da Esma fazem referência, quando repetia com orgulho "Isso não tem limites", ou a declaração de um dos militares de La Perla, "Aqui ninguém arrebenta pela metade. Isso é total", também estão associadas a atributos divinos: o caráter ilimitado de Deus, sua onipotência. A contrapartida desse poder, que em sua potência absoluta se alastra de maneira ilimitada e onipotente, é precisamente a sensação de impotência total da vítima do campo de concentração. Contudo, tanto a onipotência do sequestrador quanto a impotência absoluta do sequestrado são ilusórias. Qualquer poder reconhece um limite, e diante de qualquer poder existe uma possibilidade de resistência.

De onde vinha a pretensão dos torturadores de serem deuses? Com certeza dessa convicção de serem senhores da vida e da morte; tinham de fato a capacidade de decidir sobre a morte de muitas pessoas, de quase qualquer pessoa em uma sociedade em que todos os direitos haviam sido suprimidos. Podiam ser doadores de morte e, mais que de vida, de não morte. Na verdade, tal como já apontou Foucault, o poder de vida e de morte é somente um poder de morte, que ou se exerce ou ao qual se renuncia.

O suplício na Idade Média e o direito soberano dos reis de matar, que à primeira vista poderia parecer similar ao que aqui foi descrito, implicava uma "certa mecânica do poder: de um poder que não só não se furta a se exercer diretamente sobre os corpos, mas se exalta e se reforça por suas manifestações físicas; de um poder que se afi rma como poder armado, e cujas
funções de ordem não são inteiramente desligadas das funções de guerra".

Pelo contrário, o poder militar na Argentina corresponde mais a uma estrutura burocrático-repressiva do que a um aparelho de guerra. Sua inaptidão e desconcerto diante da única circunstância de guerra real que enfrentou no século XX, a Guerra das Malvinas, deixa isso patente. Astiz, um dos mais destacados protagonistas da repressão concentracionária, rendeu-se aos ingleses sem combater; estava mais preparado para enfrentar um peronista que um oficial britânico. Esse foi apenas o caso mais divulgado, mas a investigação dos acontecimentos demonstra a incapacidade militar e política do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Mario Benjamín Menéndez, comandante das forças militares nas Malvinas, o mesmíssimo chefe do III Corpo do Exército que fuzilava presos amordaçados em La Perla, além de revelar sua incapacidade militar, segundo suas próprias declarações "não encontrava forma de dizer: é possível parar tudo isso?"49, raciocínio contrário ao de um guerreiro, que na verdade se pergunta se é possível ganhar "isso". As Forças Armadas revelaram-se mais aptas para uma sangrenta repressão interna do que para uma guerra frontal entre exércitos.

No que se refere ao exercício interno do poder, assassinaram e torturaram institucionalmente, mas mantendo tais ações em segredo, de modo subterrâneo e vergonhoso, efetivando um direto de morte que a sociedade nunca reconheceu explicitamente. Destroçaram os corpos, em alguns casos os exibiram, mas nunca assumiram a responsabilidade desses atos. O rei
vingava uma ofensa à sua pessoa diretamente no corpo dos condenados. A Junta Militar castigava e matava como um exterminador clandestino, que ao dizer "não fui eu" negava, ele mesmo, a própria legitimidade de seus atos.

A exibição de um poder arbitrário e total na administração da vida e da morte, ao mesmo tempo negado e subterrâneo, deixava uma mensagem: toda a população estava exposta a um direito de morte por parte do Estado. Um direito que se exercia com uma única racionalidade: a onipotência de um poder que queria se igualar a Deus. Vidas de homens e mulheres, destinos de crianças e até mesmo de pessoas que ainda não haviam nascido, nada podia lhe escapar.

O Estado utilizou seu direito arbitrário de morte como forma de disseminação social do terror para disciplinar, controlar e regular uma sociedade cuja diversidade e alto nível de confl ito impediam seu estabelecimento hegemônico.

O antigo direito de vida e morte latente sobre toda a população se sobrepunha às declaradas funções disciplinadoras e reguladoras e as tornava possíveis.

Morrer, mas esperar a morte sentado e em determinada posição. Morrer, mas antes disso responder "Sim, senhor" ao falar com um ofi cial. Morrer sem combater, numa fi la de presos ordenados e amordaçados, essas "procissões de seres humanos que vão para a própria morte como fantoches"50, as quais já tinham existido nos campos nazistas. No seio desse poder burocrático não há espaço para o condenado que insulta seus perseguidores; não há espaço para a morte heroica; não há espaço para o suicídio.

O poder de vida e morte é uno com o poder disciplinar, normalizador e regulador. Um poder disciplinar-assassino, um poder burocrático-assassino, um poder que pretende ser total, que articula a individualização e a massifi cação, a disciplina e a regulação, a normalização, o controle e o castigo, recuperando o direito soberano de matar. Um poder de burocratas ensoberbecidos com sua capacidade de matar, que confundem a si mesmos com Deus. Um poder que se dirige ao corpo individual e social para fazer com que seja submetido, uniformizado, amputado, desaparecido.


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