Folha de S. Paulo


Por que se preocupar com a quilometragem da comida é errar o alvo

Em novembro de 2009, perdi a compostura diante das câmeras de TV, de uma forma como nunca havia acontecido antes, nem voltaria a acontecer. Eu estava em Los Angeles, trabalhando como jurado na segunda temporada da série americana "Top Chef Masters".

Na final, os três participantes que restavam tinham de preparar uma série de pratos que contassem a sua história: suas primeiras experiências gastronômicas, onde eles estavam agora, para onde estavam indo, e tal. Para o prato que definia aonde ele estava indo, o famoso chef Rick Moonen, de Las Vegas, havia preparado um prato de cervo, usando carne importada da Nova Zelândia.

Isso foi desconcertante. Ao longo de toda a competição, Moonen vinha se descrevendo como "o cara do peixe". Ele era também "o cara da sustentabilidade". Ele se importava com o planeta, como nos dizia dia após dia na competição. Não vou fingir. Eu não tinha ido com a cara dele. O cara da sustentabilidade? Seu restaurante ficava em Las Vegas, uma das cidades menos sustentáveis do planeta.

Eu não tinha dúvidas de que ele adquiria seus ingredientes de forma sustentável, mas só o fato de estar em Las Vegas, uma cidade que deglute água e produtos petroquímicos como se eles estivessem saindo de moda (e estão), já era por si só um ato insustentável. E agora lá estava o cara do peixe, o cara da sustentabilidade, anunciando que havia usado carne importada do outro lado do mundo. Enquanto ele estava à nossa frente, eu lhe fiz algumas perguntas incisivas. Quando os competidores tinham saído, e nós estávamos deliberando, eu estourei.

Eu gritei. Eu me enfureci. Veias saltaram.

"SERÁ QUE O HOMEM NUNCA TINHA OUVIDO FALAR DO BENDITO CONCEITO DE QUILOMETRAGEM DA COMIDA?"

Os produtores me salvaram de mim mesmo. Não incluíram nada do meu achaque na edição final. Compensei isso depois que o episódio foi ao ar, escrevendo um artigo para este jornal em que explicava a minha fúria. Moonen respondeu pela internet, me chamando para a briga; o cervo havia chegado a LA por mar, disse. Era totalmente sustentável. Seus apoiadores em Las Vegas me acusaram de ter roubado o prêmio do homem. Posso dizer firmemente que o cervo "kiwi" [gíria para neozelandês] não foi o que fez Moonen perder. A culinária de Marcus Samuelsson, chefe nascido na Etiópia e adotado e criado por um casal sueco antes de fazer fama nos EUA, era muito melhor. Samuelsson mereceu ganhar. Mas Moonen e seu bambi viajado não o ajudaram em nada.

Corte para três anos depois, e estou lendo um artigo acadêmico com um título muito chamativo: "Food Miles - Comparative Energy/Emissions Performance of New Zealand's Agriculture Industry" [milhas alimentares - desempenho comparativo energia/emissões do setor agrícola da Nova Zelândia], de Caroline Saunders, Andrew Barber e Greg Taylor. Estou citando o título completo para que você possa consultá-lo, e talvez você queira. Não é uma leitura leve, mas é importante. No mínimo, exige que eu peça desculpas a Rick Moonen. Depois de lê-lo, posso dizer agora que, embora não seja de forma alguma certeza, é possível que o cervo criado na Nova Zelândia e mandado de navio para a Califórnia seja mais sustentável dos que as alternativas na Califórnia. Pelo menos ele merece o benefício da dúvida.

Desculpe, sr. Moonen. Continuou não sendo seu fã, e isso realmente não muda o resultado do concurso. Havia outros três jurados. Mas nesse ponto parece que ele podia estar certo, e eu podia estar errado.

Segundo esse estudo excepcionalmente detalhado de 2006, o cordeiro, as maçãs e os laticínios produzidos na Nova Zelândia e embarcados para a Grã-Bretanha têm uma pegada de carbono menor do que produtos equivalentes produzidos na Grã-Bretanha. Para ser exato, o Reino Unido usa o dobro de carbono por tonelada de derivados sólidos do leite do que a Nova Zelândia, e quatro vezes no caso do cordeiro. Fiquei tão perplexo com o relatório que quis saber se eu havia lido corretamente.

Mandei um e-mail a Tim Benton, professor de ecologia populacional na Universidade de Leeds, e também o "Paladino do Reino Unido para a Segurança Alimentar Global", encarregado de coordenar os trabalhos sobre o tema entre conselhos de pesquisas e departamentos governamentais. Ele realmente entende tanto os desafios alimentares globais que enfrentamos quanto o que significa intensificação sustentável. Ele já havia sido uma inestimável fonte de orientação e documentos acadêmicos desde o início da minha investigação sobre os desafios da segurança alimentar. Eu queria saber se o relatório era simplesmente um caso em que o setor agrícola da Nova Zelândia tentava proteger seus interesses comerciais massageando ferozmente alguns números.

Ele fez algumas ressalvas, mas disse: "O quadro geral é provavelmente verdadeiro".

Para mim, foi o prego final no caixão do localismo. É que já fazia meses que eu vinha sendo martelado por isso.

No final da década de 1990, quando o termo "quilometragem da comida" foi cunhado por Tim Lang, professor de política alimentar na City University, isso virou uma parte vital e importante do debate sobre como o nosso sistema alimentar funcionava. Era uma noção simples e facilmente compreensível: quanto mais sua comida viajar do ponto de produção até o ponto de varejo, pior para o ambiente, em decorrência da quantidade de combustível que a viagem exige.

Foi essa simplicidade que fez desse o grito de guerra para ativistas alimentares em todo o mundo desenvolvido. Havia, finalmente, uma forma tangível de descrever o que estava errado com o nosso sistema alimentar. Isso também deu a consumidores ambientalmente preocupados uma forma simples de julgar se deveriam comprar um produto. Ele havia vindo do local mais próximo possível? Se sim, então lá ia ele para o carrinho.

O problema é que isso é simplista. Observar apenas os custos de transporte do seu alimento não é apenas deixar de enxergar o quadro mais amplo, é deixar de enxergar o quadro por completo. A única forma de você ter alguma noção sobre a pegada do seu alimento é usando a chamada "análise do ciclo de vida" (ACV), que leva em conta toda a produção daquele item: os produtos petroquímicos usados no cultivo e nos fertilizantes, a energia para fabricar os tratores e para fazê-los andar, para construir prédios rurais e cercas, e tudo isso tem de ser mensurado em contraposição à produção. Trata-se de emissões por tonelada de maçãs ou de cordeiro. O relatório da Nova Zelândia usou quase 30 mensurações diferentes na sua ACV. E é quando você começa a ir fundo nelas que o argumento rapidamente se prova.

Usando uma ampla amostra de fazendas de maçã no Reino Unido e na Nova Zelândia, os pesquisadores concluíram que o peso real de fertilizantes de nitrogênio usado era semelhante nos dois países (80 kg por hectare na Nova Zelândia; 78 kg por hectare no Reino Unido). No entanto, na Nova Zelândia eles estavam conseguindo uma produção de 50 toneladas por hectare, contra 14 toneladas na Grã-Bretanha. Quanto ao cordeiro, a produtividade era maior na Grã-Bretanha do que na Nova Zelândia, mas o uso de fertilizante de nitrogênio também o era, na ordem de 13 vezes.

A Nova Zelândia simplesmente tem paisagem e clima melhores para produzir cordeiros e maçãs. É claro, como me fez observar o professor Benton, que algumas dessas cifras podem estar desatualizadas --mas não muito. Há também infinitas discussões sobre quais coisas deveriam ser mensuradas, e quais não deveriam. Mas, mesmo que esse seja o exemplo mais extremo, ele convence.

Jan Kees Vis, diretor global de desenvolvimento de fornecedores sustentáveis da Unilever, na Holanda, supervisiona pesquisas que estimam em 2% a 3% a proporção da pegada global de carbono atribuída à sua comida como resultado do transporte. Não se convenceu? Afinal de contas, a Unilever teria um nada desprezível interesse próprio nisso. É fato. Olhe, então, para o estudo detalhado e independente de Christopher Weber e H. Scott Matthews, da Universidade Carnegie Mellon, de 2008. Ele estima esse dado em 4%. Ou, como me disse o professor Benton: "Se você quiser eliminar toda a quilometragem da comida que você come, só precisa trocar o consumo de carne vermelha de um dia da semana por carne branca. Nem mesmo por uma dieta vegetariana. Só por carne branca".

Há uma enorme quantidade de pesquisas para amparar isso, mostrando quanta terra adicional você precisaria se a produção alimentar se transferisse de onde está agora para ficar convenientemente próxima de você, de modo que você pudesse se sentir bem a respeito da sua quilometragem alimentar. Mas até mesmo eu acharia isso tedioso.

Então, em vez disso, venha comigo por um instante até os brejos de Lincolnshire. Geralmente, odeio lugares planos. Eles solapam a vontade, drenam a ambição. Mas vou tolerar isso a fim de apresentar um argumento matador sobre a vantagem comparativa na agricultura. Se você olhar para um mapa do cultivo de batatas na Grã-Bretanha, verá rapidamente que ele se concentra aqui nas planícies ao redor de King's Lynn e na fronteira com a Escócia.

Não é um acidente, me explica o produtor de batata Bill Legge enquanto me leva para conhecer sua lavoura, limitada em ambos os lados por margens gramadas, para manter a água afastada. Legge cultivou batatas por aqui a vida toda, sobre terras que estavam embaixo d'água até o século 17. "É um solo de turfa aqui, então precisamos usar menos fertilizante de nitrogênio", diz ele. Não é só isso. Essa terra escura e fofa é boa para a colheita da batata. "Aqui, conseguimos umas 20 toneladas por acre [0,4 hectare]", me diz Bill.

E se a produção de batata fosse transferida para mais perto da capital? Afinal, tem mais gente morando em Londres do que, digamos, em King's Lynn. "Bom, lá tem um solo de argila, e não é tão produtivo. Além disso, é danado de difícil de colher na terra dura."

Quão menos produtivo é?

"Lá você conseguiria umas 16 toneladas por acre."

Então a produtividade seria 20% menor. Em outras palavras, para conseguir que a mesma quantidade de batata fosse cultivada localmente em Londres, você precisaria de 20% mais terra. Ou teria de bombardear a terra com enormes doses de fertilizantes. De qualquer forma, a pegada das suas batatas seria maior. É por isso que elas são cultivadas em Lincolnshire, e não em Essex.

É claro que, se você mora em Lincolnshire, é de lá que deve comprar suas batatas. Elas são locais para você. Elas são a opção mais sustentável. Olhe, eu nunca disse que seria simples. É qualquer coisa, menos isso. Assim como a quilometragem da comida tornou tudo simples demais, o fim da quilometragem da comida como mensuração única torna tudo muito complicado. E deixe-me tornar um pouco mais complicado ainda: há outras boas razões para comprar comida local, que não têm nada a ver com a sustentabilidade.

Pode ser ótimo para as economias rurais, e economias rurais viáveis podem ser boas para as comunidades. Mas, se você for flagrado no canto do supermercado por algum guerreiro alimentar entortando o olho para o seu carrinho em busca de sinais de transgressão na quilometragem alimentar, pode dizer a ele que eu o mandei cair fora. Vai lá. Treine um pouco. Grite com o guerreiro. A sensação é boa, né?

A esta altura, já deveria ser óbvio que tudo isso também vale para questões que envolvem sazonalidade. O argumento tradicional funciona assim: se um ingrediente está disponível fora de temporada, ele deve ter sido cultivado em algum lugar muito distante. Portanto, por causa dos quilômetros que ele viajou, ele é insustentável. Mas esse pode não ser bem o caso.

Um morango amadurecido sob o sol do inverno no Marrocos pode ter uma pegada de carbono menor do que o que foi cultivado em um politúnel no auge do assim chamado verão britânico. Pode-se argumentar muito que os morangos britânicos da estação são mais gostosos. Isso tem a ver puramente com estética.

Você também pode argumentar, suponho, que será mais saudável para a nossa cultura gastronômica se só comermos conforme as estações --embora, em um mundo globalizado no qual alegremente consumimos filmes, músicas, programas de TV e livros de todos os cantos do globo, o argumento não tenha exatamente pernas de aço. O que você não pode imediatamente pressupor é que essa seja a opção menos sustentável. Explicar isso para pessoas que já construíram padrões inteiros de comportamento em torno da ideia de sazonalidade é difícil. Mesmo assim, elas precisam que alguém lhes diga.

Morte à tarde: Jay Rayner testemunha o trabalho de um matadouro

É bem cedo numa manhã de segunda-feira. Fui colocado para trabalhar no tanque dos porcos e eu estou me esforçando para regular minha respiração de modo a lidar com a sobrecarga sensorial. Danny e Allan, os dois caras com quem estou trabalhando --e eles são caras; esbeltos, robustos, com o corpo rijo e um senso de propósito que lhes faz cerrar as mandíbulas--, vão tocando. Eles estão fazendo o negócio. Fazem esse negócio todo dia, às vezes durante seis ou sete horas, e nem consigo imaginar como.

Apesar de todo o peso extra que carrego, estou em forma, como resultado do hábito de fazer ginástica. Provavelmente nunca estive tão em forma na vida, mas estou genuinamente com medo de que este trabalho no tanque dos porcos vá me derrotar; de que me retorcerei sobre meus joelhos e me humilharei, dominado pelo barulho, pelo cheiro, pelo calor e pelo peso inclemente de tudo isso.

Estou intimidado.

A manhã começou para mim pouco depois das 6h, e eu já achava que havia sido demais. Estou no matadouro John Penny and Sons, em Rawdon, aquela parte de Leeds onde ela abaixa a cabeça para a fumaça de Bradford, logo acima do morro. O J. Penny é um negócio raro, que integra fazenda de criação, abatedouro e açougues, famoso não só por abastecer o mercado com algumas das carnes de mais alta qualidade, mas também por sua completa abertura.

REALIDADE

O setor dos matadouros na Grã-Bretanha --e do mundo todo-- é notoriamente afeito ao segredo, e não é surpreendente que seja assim. Ativistas do bem-estar animal podem dificultar muito a vida deles, e assim têm feito, com uma boa razão: os piores abusos a animais no momento da morte já foram em geral identificados por ativistas excepcionalmente valentes, que têm como trabalho registrar o sofrimento --chamemos de tortura, que é o que é-- perpetrado por pessoas a quem delegamos poder.

Essa é a realidade. Queremos comer carne, mas não queremos participar do que é necessário para obter essa carne. Nós viramos a cara para isso. Pedimos aos outros para que realizem essa atividade por nós, e não olhamos. Embora a crise da encefalopatia espongiforme bovina na década de 1990 tenha levado a uma vasta reforma na regulamentação e fiscalização dos abatedouros na Grã-Bretanha, eles ainda continuam muito arredios a qualquer exame externo por parte da imprensa. Eles em geral não deixam as pessoas entrar. O Penny atualmente encarregado do negócio, John, acredita em deixar as pessoas entrar. Ele é um homem de Yorkshire, grande e sólido, que mantém o cabelo escovinha cortado curto, como que para poupar tempo. "Não temos nada a esconder", ele me diz. "Olhe tudo."

Os animais criados pela empresa para abate viajam apenas alguns metros da fazenda, que fica morro abaixo, até o matadouro, o que reduz os níveis de estresse. Lá também são abatidos animais de outros criadores, mas essa produção vem de Yorkshire, bem perto daqui. E o negócio é pequeno. Em um mês, o J. Penny abate cerca de 2.000 ovelhas, 6.000 porcos e 1.000 bois. Há abatedouros industriais nos EUA que matam 5.000 cabeças de gado por dia. Existem registros mostrando que a família Penny trabalha na produção rural nesta região desde o final do século 18. Eles certamente estão neste terreno desde 1891, e abriram seu primeiro abatedouro aqui em 1938.

Agora eu deveria trabalhar lá. Para realmente entender o que estava acontecendo, para entender a relação entre nós e nosso jantar outrora consciente, senti que deveria partir para uma exposição prolongada. Precisava ficar lá durante tempo suficiente para me habituar ao que acontecesse ao meu redor. John Penny aceitou que eu viesse passar um par de dias, e eles me colocariam para trabalhar em quaisquer tarefas não-qualificadas que houvesse.

E então, numa manhã de verão bem cedo, apareço no lugar e sou convidado a seguir um rebanho de ovelhas através das chamadas "camadas" --o galpão com zonas de contenção, separadas por ruidosos portões metálicos. Quando o portão da frente se abre para permitir a passagem dos animais, o de trás se fecha, num corredor contínuo que serpenteia de volta para si mesmo subindo pela inclinação de concreto, e trazendo os animais cada vez mais perto do ponto de abate.

Clive, um ex-açougueiro que agora comanda o abatedouro, me leva até um ponto logo acima da câmara que fica no início da chamada "fila da morte". Lá, um jovem chamado Josh --"Me chamam de 'o especial'", diz ele com um sorriso quando somos apresentados-- estava usando um par de enormes raquetes eletrificadas, no formato de pinça, para atordoar as ovelhas.

"Só a mãe do Josh o chama de especial", diz Clive, balançando a cabeça.

As ovelhas são tocadas para dentro da sala em grupos de oito, mais ou menos, e uma portinhola se fecha ruidosamente atrás delas depois que elas entram. Josh se posiciona com uma perna de cada lado do quarto traseiro de uma ovelha. Ele pressiona as raquetes na lateral da cabeça e elas caem, inconscientes. Sobre a cabeça de Josh passa um longo trilho contínuo, do qual pende um conjunto de correntes. Ele engancha uma delas na perna dianteira do animal, que é então erguido e fica pendurado com a cabeça para o teto.

A ovelha segue pelo trilho até o lugar onde um homem mais velho, com avental de plástico, está à espera, com a faca perfurante na mão. Allan, aproximando-se dos 65 anos e da aposentadoria, passou a maior parte da sua vida profissional aqui. Ele é grisalho, sólido e um pouco redondo na barriga, onde o avental fica saliente. Ele agarra a ovelha que passa e enfia a lâmina abaixo da orelha, para romper a artéria. Há um jorro de sangue rápido, mas contido. O animal se debate. Acabou.

"Os porcos se debatem ainda mais do que as ovelhas", me diz Clive, enquanto ficamos de pé olhando.

Josh atordoa outra ovelha. "Esse é um atordoamento perfeito, isso aí", diz Clive. "Pernas dianteiras para fora, pernas traseiras para dentro."

Pergunto a Josh, que tem entre 20 e 30 anos: "Há quanto tempo você faz isso?".

"É o único trabalho que eu já fiz", diz ele.

"Por quê?"

Ele dá de ombros. "Me ofereceram o trabalho." Ele atordoa outra ovelha e a passa adiante, para Allan.

Enquanto conversamos, as ovelhas vão chegando. Josh continua a atordoá-las. Allan continua a espetá-las. Estou olhando para baixo, para um corredor pintado de branco, com as paredes salpicadas de sangue. No final, o trilho faz uma curva, levando as ovelhas mortas para uma longa fila de homens, cada um com uma tarefa diferente: as ovelhas serão decapitadas, sua pele será arrancada, elas serão estripadas e terão os corpos serrados ao meio. Todos esses homens estão esperando. Podemos conversar, mas o trabalho não pode parar. Há 700 ovelhas para passarem aqui.

Pergunto a Clive se eles precisam ficar atentos a que tipo de gente empregam.

"É claro", diz ele. "Você pega alguns. Você vê se eles estão tirando da experiência algo que não deveriam." Esses são tirados do emprego. Dito isso, ele não nega como a fila da morte pode fazer você se sentir. "Sem dúvida. Fazer isso dá uma sensação de poder. Você vê um animal grande e percebe como é fácil derrubá-lo." Ele não diz isso se gabando nem com entusiasmo. Ele diz isso com o jeito pensativo de um homem que passou a vida toda nesse ofício, que sabe que há certos fatos da vida que não devem ser evitados. Observamos as ovelhas morrendo durante cerca de meia hora. Deixa de ser tão dramático quanto era inicialmente. Há um ritmo. Mas não deixa de ser chamativo.

Essa é a vida, suspensa.

As ovelhas acabaram, e é a hora dos porcos. Clive me convida a trabalhar no tanque, e sei que não posso recusar. É para isso que estou aqui. É um tanque de água quente --62ºC--, com cerca de 6 metros de comprimento, 1,2 metro de profundidade, e 3 metros de largura. Atrás da parede às nossas costas, no corredor da fila da morte, os porcos estão sendo perfurados por Allan. Posso escutar o barulho que eles fazem, berrando e grunhindo na área de contenção antes de receberem o choque das raquetes elétricas. Posso escutar o ruído metálico das correntes. A certa altura, olho para o outro lado da parede e vejo o encarregado do abate. Nossos olhos se encontram. Ele está cansado.

Com as ovelhas, Allan estava apenas um pouco respingado. Agora ele está encharcado. Está coberto de sangue, dos tornozelos até o visor transparente na sua máscara. Está em todo lugar, e os porcos continuam a sangrar quando dobram a esquina, numa enorme maré serpenteante e escarlate. Quando eles se aproximam de nós, um dos meus colegas levanta uma alavanca que por sua vez eleva uma seção articulada da correia sobre nossas cabeças. Ele assim pode suspender os porcos por cima da beirada do tanque, para então depositá-los na água com um grande chapinhar. Há o cheiro de sangue seco, um travo de urina e fezes e, por cima disso tudo, algo familiar, que acabo identificando como caldo de porco. Pois é isso que acontece quando você submerge porcos recém-mortos em água quente.

PROCEDIMENTO

Quando os porcos atingem a água, nosso trabalho é agarrar as correntes em volta das suas pernas, três ou quatro de cada vez, e enganchar a ponta na lateral dos tanques, de modo que os corpos não se percam nas profundezas. Aí, devemos arrastar os animais por todo o comprimento do tanque, puxando-os contra a tensão fluida, empenhando-nos em fazê-los se mexer. Danny, trabalhando ao meu lado, é baixo, forte, e prefere empurrar as correntes para baixo; eu prefiro usar meu peso para puxar, mas às vezes noto que meus pés escorregam no concreto molhado.

Só que estou tentando mover cerca de 300 kg de porco a cada vez. Esperando na ponta está a máquina de esfregar. Empurramos os porcos através da água, até em cima de uma plataforma que os eleva para fora da água, colocando-os em uma câmara com a lateral aberta. Lá, eles são esfregados por raquetes de borracha que giram furiosamente e têm dentes metálicos na ponta, os quais arrancam qualquer pelo e, enquanto os porcos estão lá dentro, também as unhas. A cada minuto, mais ou menos, aparece uma labareda violenta, que serve para arrematar o trabalho. Finalmente, eles são cuspidos pela outra ponta, novamente presos às correntes, e enviados fila afora.

São 90 minutos de drama suíno, tal qual roteirizado por Hieronymus Bosch. Ha o fedor, o barulho da água quente respingando, e o arrastar dos porcos. Há o rugido da máquina e o calor da labareda. E ainda por cima há o barulho dos animais e o chapinhar e respingar do sangue que inevitavelmente atinge você. Ocasionalmente, aparece um animal que está se debatendo mais do que os outros, e Danny leva uma faca até eles para garantir que estejam adequadamente liquidados, se agachando sob o jorro de algo quente e arterial, para terminar o trabalho o mais rapidamente possível. E, naturalmente, isso é contínuo.

Faço o possível para manter o ritmo e não ser um estorvo. Ocasionalmente perco um porco na água, e alguém precisa vir em meu socorro para recuperá-lo embaixo da superfície. Eu me sinto envergonhado e literalmente emasculado. Sou um escritor. Fico sentado à minha mesa. Eu digito. Nunca fiz nada que parecesse remotamente masculino. E sinto que estou fracassando. E aí me sinto envergonhado, não por estar tentando me mensurar dessa forma, mas por pensar desse jeito quando na verdade o que está acontecendo ao meu redor, a morte dos porcos para alimentar meu próprio hábito intenso de consumir carne de porco, é tão mais importante.

E há a sobrecarga. Sinto o esforço no centro do meu abdome, nos meus braços e no meu pescoço. Sinto isso em todo lugar. E quando, após uns 90 minutos, Clive me convida para experimentar outra coisa, agarro a chance, raciocinando que preciso fazer o máximo possível enquanto estiver aqui. Deixo Danny e Allan entregues a isso. Estou feliz por me despedir.

Tradução de RODRIGO LEITE.


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