Folha de S. Paulo


França defende barricadas culturais na era digital

A subida da maré digital ameaça levá-la embora; as negociações de logo mais sobre um novo acordo comercial entre a União Europeia e os Estados Unidos podem abrir buracos nela. Mas a determinação de Paris em defender "l'exception culturelle" permanece inquebrantável.

Se alguma dúvida sobre isso persistia em Bruxelas ou Washington, ela foi dissolvida no começo de maio com um relatório de 500 páginas encomendado pelo presidente François Hollande, que em termos bastante assertivos reiterou o compromisso da França com políticas que protegem suas artes, seus grandes estúdios cinematográficos e seu setor fonográfico --e, de forma não menos importante, suas frágeis empresas da internet.

A mais chamativa das suas 80 recomendações foi a proposta, rapidamente encampada pelo governo socialista, de taxar a venda de smartphones, tablets e outros aparelhos conectados à internet, para ajudar a financiar filmes franceses e outras atividades culturais.

Mas a obrigação mais ampla do relatório era apresentar um plano sobre como ampliar e integrar à era digital uma política que remonta à década de 1960, quando Paris começou a apoiar ativamente a cultura francesa contra o ascendente domínio de produtos americanos --e em inglês.

O predomínio de alguns poucos agentes globais sobre a internet "constitui uma imensa ameaça à diversidade cultural", disse o relatório, intitulado "Cultura: Segundo Ato".

Pierre Lescure, ex-executivo da TV Canal Plus que comandou a redação do relatório, acrescentou na sua introdução que "a adaptação determinada da exceção cultural francesa diante do uso digital é, como disse alguém, uma obrigação candente".

Hollande já declarou que a França só concordará com as negociações propostas entre UE e EUA sobre um novo acordo comercial se elas não incluírem a exceção cultural.

"Grandes agentes internacionais, que evitam a regulamentação francesa e não dão muita importância à diversidade cultural, estão adquirindo um crescente poder. Com poucas exceções, os atores franceses raramente conseguem impor seus serviços nos novos canais", disse o relatório.

"As futuras negociações comerciais não devem ser a ocasião para questionar [a exceção cultural]", acrescentou o texto. "Os serviços audiovisuais devem permanecer excluídos, de forma absoluta e incondicional, de qualquer liberalização. Os serviços audiovisuais que usam ferramentas digitais devem se beneficiar das mesmas regras protetoras que os serviços audiovisuais tradicionais."

A "exception culturelle" foi entronizada na década de 1980, durante o governo de François Mitterrand, último presidente socialista antes de Hollande, que o tem como mentor. Ela tem amplo apoio em todo o espectro político francês. Como observou Lescure, a França baseia sua política de proteção cultural em regras da Organização Mundial do Comércio e da Unesco, a organização cultural da ONU, com sede em Paris --regras estas que a França insiste serem também do interesse de outras culturas minoritárias.

A política se baseia em uma série de apoios financeiros e regulamentações, incluindo quotas. A indústria cinematográfica francesa, com 200 filmes por ano, recebe subsídios da ordem de € 1 bilhão por ano, vindos de taxações sobre emissoras de TV, operadoras de telecomunicações e cinemas. Há quotas de transmissão para proteger a música em francês.

O Estado está envolvido em vários outros esquemas de financiamento para diversas formas artísticas, e cada vez mais busca amparar seu vibrante setor de games e outros negócios da internet. Neste mês, Arnaud Montebourg, ministro da Indústria, se opôs à cogitada venda para o Yahoo de uma participação majoritária no Dailymotion, site de compartilhamento de vídeos que o Estado havia ajudado a financiar por meio do seu Fundo de Investimento Estratégico.

O problema na era digital é que grandes atores como o Google, com seu serviço de vídeos YouTube, o serviço telefônico Skype e o site de varejo Amazon podem driblar os operadores locais, fornecendo produtos que não estão sujeitos aos mesmos regulamentos e taxações, e corroendo os efeitos das políticas destinadas a proteger os produtores franceses.

Lescure confrontou isso propondo uma variedade de medidas que inclui certo abrandamento das regras, como o desmantelamento do rigoroso regime francês contra quem faz downloads ilegais, junto com sua recomendação tributária.

Ele rejeitou como sendo legalmente duvidosa a pressão dos setores jornalístico e musical para impor ao Google uma divisão de faturamento. Mas ele disse que a UE deveria permitir que os Estados membros reduzam as alíquotas do IVA (imposto sobre valor agregado) sobre livros digitais, a fim de ajudar editoras e autores dos idiomas locais.

"Longe de ser um instrumento de protecionismo econômico ou a expressão de uma concepção defensiva de cultura, a exceção cultural permite a possibilidade, para os Estados, de apoiar seus criadores, de promover a diversidade cultural e de regulamentar a oferta cultural, inclusive na sua forma digital", disse o relatório.

Tradução de RODRIGO LEITE.


Endereço da página: