Folha de S. Paulo


O dever do poeta

RESUMO Há 50 anos, Armando Freitas Filho estreava com a coletânea de poesia "Palavra". Sistemático, ansioso e com uma afetividade que cativa os amigos para a vida inteira, ele prepara "Dever", que comemora a efeméride. O lançamento, da Companhia das Letras, promete ser um dos principais na poesia brasileira em 2013.

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A tarde cai sobre a Urca quando o homem magro abre o portão. De cara, explica que está atarefado com os preparativos para receber a filha, Maria, o genro, Stefan, e os dois netos (Max, quase 6 anos, e Mia, 9 meses), que vêm de férias da Suécia. Não demora a confessar: é ansioso.

Por isso, os próximos meses se avolumam como uma sombra sobre este homem: além da chegada da família, em junho, que vai lhe permitir conhecer a neta (ele tem pânico de longas viagens aéreas), o começo do segundo semestre lhe trará também "Dever", coletânea que celebra 50 anos de poesia, contados a partir de "Palavra".

Armando Freitas Filho é um poeta excepcional, da estatura dos grandes do século 20

Armando Freitas Filho é um homem afeito aos rituais. Por isso, observa com rigor certos aspectos da rotina; uns são fonte de orgulho, como fazer ginástica "obsessivamente há mais de 40 anos"; outros, se não merecem alarde, tampouco são escondidos. Veja-se a cena do jantar, por exemplo.

Sobre a mesa, nada é propriamente pecaminoso: frango assado, arroz, salada. "A salada está sem tempero porque ele não come", explica Cri --como ele chama sua mulher há 33 anos, Cristina Barros Barreto. A refeição se completa com uma quiche de queijo feita em casa. Mas não para o poeta, que, segue explicando Cri, não admite queijo. "É gorduroso", justifica ele, que troca o acompanhamento por batata cozida --sem sal.

Já o queijo fresco, acompanhando o doce, ele aceita --o doce, porém, é sem açúcar, maçã cozida "en soi-même", como diz ele, provando a compota após comer mamão. Não tem problemas em definir sob o epíteto "comida de hospital" seus hábitos à mesa. Mais: consente animado e aproveita para se dizer hipocondríaco.

Armando confirma evitar o que as pessoas associam ao prazer -- "não posso me distrair do que importa". Ainda assim, todo sábado, o casal vai ao Bar Urca. Lá, Cristina janta e toma uma única caipirinha. Armando, não: antes de atravessar a rua que separa seu portão do estabelecimento (onde, na infância, funcionava um boteco em que alguns moradores, como seus pais, iam comer frutos do mar), toma uma sopa em casa. "A sopa de legumes é a alegria da minha mesa."

Ao lado do prato, um papel lista: chuchu/batata/abóbora; os três legumes do dia. "Peço para anotarem que é para ver se formo paladar."

ENCRAVE

Entre os ritos diários do poeta, está a caminhada de toda manhã pelas ruas desse encrave entre mar e montanha que é a Urca. O bairro é o feudo do poeta, que nele passou quase a vida toda. As amendoeiras, o céu, o mar, a "unha" do Pão de Açúcar encravada no jardim da casa onde vive, herdada de uma tia-avó solteira e reformada por Cristina, são presenças nítidas em seus poemas.

Armando morou até 1955 em outra casa por ali, de frente para o mar, já demolida. Naquela "casa grande" viveu ao lado dos pais, dos avós maternos, tios e primos. Se não foi ali que escreveu os primeiros versos (e sim num apartamento do Flamengo), foi por causa dela que a história começou.

A família ocupava 10 dos 12 quartos --os demais eram o quarto de brinquedos que aparece num dos primeiros poemas de "Dever", e o de costura, onde uma vez por semana a costureira Olívia fazia reparos nas roupas da família: apesar de ter posses, todos foram educados para não desperdiçar. Armando dá mostra: a camisa que veste, diz, foi comprada nos EUA, em 1958. A rotina espartana lhe permite manter os mesmos 60 quilos de seus "verdes anos".

Em casa ele era o "primo diferente". Relacionava-se "por atrito" com os três primos, "todos exemplares", além de mais velhos que o gago e franzino Armando, nascido de sete meses ("Isso, 73 anos atrás, era sério; nasci pesando como um bife, quase"). "Embora na casa fossem tão excelentes", segue ele, "eu tinha uma coisa singular. Eu escrevia desde muito pequeno".

A velocidade com o lápis, da qual ele se gabava, foi uma das coisas que mudaram quando ele deixou de ser inédito. "Desde que comecei a escrever publicamente, eu sou um lento escritor. Agora, um escritor de todo dia. Comigo não tem essa coisa de esperar a poesia chegar: eu vou de encontro a ela. Se ela chegar, estou pronto para escrevinhá-la. Se ela não chegar, eu estou sempre em contato com ela, através da leitura, porque fui e sou um leitor compulsivo."

Ainda sobre a infância de Armando, a crítica Heloisa Buarque de Hollanda anotou no prefácio de uma antologia dele que organizou em 2010 ("Armando Freitas Filho", Global): "Armando não se destacava na escola. Nem no convívio familiar. Assim, sua recepção na família sempre foi marcada pela ambiguidade. Até o dia em que, com 11 anos, foi levado para fazer o famoso teste de QI, bastante comum na época. Seus primos tiveram na avaliação do coeficiente de inteligência notas bastante altas, por volta dos 130 pontos. Armando, patinho feio, surpreendeu a todos com um coeficiente de 158. Ele não sabia que era inteligente, tampouco sua família. Seu pai, pego de surpresa, disse: 'Mas o Orson Welles tem 152!'".

PRESENTE

A infância já estava para trás quando, aos 15, 16 anos, Armando Freitas pai deu a ele um disco de poesia que mudaria sua vida. O rapaz se pôs a ouvir, "encantado", o lado A, com poemas de Manuel Bandeira (1886-1968), como "Profundamente", "Noturno do Morro do Encanto".

"Sou uma pessoa de repetição. Não bastava eu ouvir 'Evocação do Recife' uma vez. Tinha que ouvir 10, 12, 15, 18 vezes, para entender, aos 15 anos, como aquele homem conseguia fazer aquilo." Até que um dia, conta ele, "aconteceu uma coisa". "De repente, não sei quando, e não estou mitificando, resolvi virar para o lado B. Se eu fizesse um filme um dia, eu fazia um filme curto, só eu virando esse disco lentamente, até chegar ao lado B. O lado B era Carlos Drummond."

Armando nunca se refez, pode-se dizer, daquele momento decisivo. Virar o disco foi quase um trauma. A sensação que teve, ainda não conseguiu traduzir em verso. Ainda --pois seus versos, diz, nascem de "sensações psicológicas" à espera da palavra certa.

"Se Bandeira foi um alumbramento, como ele dizia, com Drummond eu tive uma sensação de perigo." E tenta explicar: "Lá em casa tinha um laguinho para plantas. Minha mãe que cuidava. Não era um lago límpido, tinha bichos lá, sapos, lacraias. A impressão que eu tive era de ter enfiado a mão naquele lago. O lado B era o lado das coisas que eu não sabia. Que eu não tinha ideia que se podia escrever. Como, como ele podia escrever o que eu sentia por dentro, tão exatamente? Como, como?".

O poeta se agita; embora tenha chegado até ali dominando, com breves pausas, a gagueira da qual nunca se livrou, conforme se lembra do lado B ele vai ficando hesitante. Se bem as ideias estejam ali, firmes, a voz tartamudeia.

"O poema que me tocou de uma maneira profunda foi 'Morte no Avião'... Carlos Drummond detestava viajar... É o poema que tem o famoso verso: 'Caio verticalmente e me transformo em... me transformo em...'. Não consigo falar... o famoso verso final." Até que sai: "Caio verticalmente e me transformo em notícia". O próprio Armando frisa a notável dificuldade de expressão: "Sou gago, mas estava falando perfeitamente. Quando vem essa coisa, me toma de uma forma total... compreende?".

"Não escrevi ainda isso, isso está sendo escrito por mim, esse lago. Está dentro de mim há tantos anos e eu não consegui dar expressão a isso com a força que eu quero dar. Como se minha mão estivesse presa lá dentro, segurando coisas que eu sabia que eram estranhas, mas --na acepção de Freud-- tão familiares. Estou assim até hoje."

Para o rapazola era incompreensível a mágica da poesia. "Ele descreve a viagem que vai fazer e antecipa a morte dele no... avião. Mas como é possível? Isso não é lógico e, no entanto, tem tanta lógica!"

Sobrou para o pai. "Eu lia para papai. Papai tinha um escritório em casa, eu ia lá onde ele ficava lendo e estudando. Sentava do lado dele e lia para ele alto, dessa maneira gaguejante, e ele ouvia com uma paciência de Jó. 'Papai, como se consegue isso?'. Não me lembro exatamente, mas ele me dizia alguma coisa mais ou menos assim: 'Ele consegue porque tem vontade'."

Armando, à época, "escrevia seus cadernos" --como quem faz lição de casa ("dever", no dizer carioca), ou talvez ginástica (as comparações entre o ofício e o exercício físico vêm e vão na sua fala e não são fortuitas). Neles, produzia variações de versos que lhe causavam impacto, "pastiches", diz --"caio verticalmente e me transformo em manchete", para ficar no exemplo do "verso fundador" de CDA. Repetia em série os poemas para entender sua manufatura. Chegou a copiar inteiro "A Luta Corporal" (1954), de Ferreira Gullar --este, diz, para poder devolver o livro emprestado por um amigo.

A lenta deglutição da poesia alheia virou a ruminação da sua própria. A primeira ideia é sempre anotada à mão --a Olivetti Lettera 22 e o computador, para "passar a limpo", vêm depois.

Já teve outros cadernos, nos quais fazia o detalhadíssimo projeto de seus livros --a ordem dos poemas, os temas, as datas. As páginas volta e meia se cobrem com o mesmo verso, como se a hesitação da fala ganhasse a escrita, coalhando as palavras até firmar.

Hoje, Armando abandonou os cadernos por papéis reaproveitados, que amontoa sobre a escrivaninha. Num recorte, conta as sílabas --não pela métrica, mas para ver se a mancha do poema vai ficar uniforme. Noutro, sublinha determinados versos: esses são os que "importam", o cerne ou "coração" dos poemas. "O resto é alvenaria."

Muitos desses versos lhe "chegam" em caminhadas. "Sou peripatético. Vou pedindo caneta em todo lugar, no posto de gasolina, em todo canto, caneta e papel."

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Retrato de Armando Freitas Filho feito por Paulo Monteiro sobre foto de Daniel Marenco
Retrato de Armando Freitas Filho feito por Paulo Monteiro sobre foto de Daniel Marenco

Assim nasceram, por exemplo, estes: "Mas a infância já se feriu, inevitável/ao entrar na casa de dois dígitos para sempre", do poema "10 anos", escrito para Carlos, seu filho com Cristina (hoje tem 21 e estuda direito). O poeta recorda que anotou os versos "na testa do Miles Davis"--calcando a caneta preta no cinza do recorte de jornal sobre o disco que ia comprar. O perigo, diz, não é esquecer o teor, mas "perder o modo de dizer".

Flavio Moura, que editou "Dever" na Companhia das Letras, diz que ele "é um autor detalhista, mas que não dá trabalho nenhum": "A cada semana, ele mandava uma versão nova, acrescentando um poema, corrigindo erros, mudando a ordem dos textos".

"A amizade entre um autor e seu editor pode ser muito próxima e luminosa, pois se apoia na confiança e na cumplicidade e não se embaça", diz Heloisa Jahn, atualmente na Cosac Naify. Ela editou "Raro Mar" (2006) e "Lar," (2009), os primeiros livros que o poeta lançou pela atual casa.

"Trabalhar com Armando é lidar com a delicadeza", elogia. "Trocamos muitos e-mails, conversamos por telefone quase diariamente, nos encontramos sempre que possível. Nunca, em nenhum momento houve a menor dificuldade no processo de edição. Só convergência de opinião, concordância, prazer na conversa."

Assim como seus "mosqueteiros" --apelido que dá a Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Carlos Drummond de Andrade, sem esquecer do "D'Artagnan" Ferreira Gullar--, Armando foi por 35 anos funcionário público. Embora tenha feito sua carreira em instituições culturais --Fundação Casa de Rui Barbosa, Conselho Federal de Cultura, Instituto Nacional do Livro, Biblioteca Nacional e Funarte--, crava: "Não usufruí nada de bom nos trabalhos que tive".

ENXURRADA

A atenção que dispensa aos jovens poetas que o procuram chegou a gerar um mal-entendido: uma reportagem certa vez sugeriu que ele tinha na indicação de novos autores um ofício. "Não culpo a repórter que me entrevistou ao telefone; o que houve foi uma confusão minha com ela, que me rendeu uma enxurrada de pedidos para que encaminhasse livros para editoras. Os leitores entenderam que eu vivia disso!"

A poeta Alice Sant'Anna, que acaba de lançar seu segundo livro, "Rabo de Baleia", o conheceu há dez anos, quando tinha 15, depois de se interessar, durante a pesquisa por um trabalho escolar, pela poesia de Ana Cristina Cesar. "Nunca tinha ouvido falar nela e achei incrível, muito diferente de tudo o que tinha visto até então. Para mim a ideia de poesia era uma coisa mais canonizada, mais formal, rebuscada." Num livro de Ana C., deu com o nome do poeta, organizador do volume. "Poxa, quem é Armando Freitas Filho? Adoraria conhecer", disse ao pai.

O pai, fotógrafo, teve um dia de ir retratar Armando para um projeto que nunca saiu --e lá se foi Alice, levando uma pasta "com contos e uns três poemas". "Quando eu entrei na casa dele foi que me dei conta do mico que estava pagando de ir visitar um poeta consagrado com aquela pasta de coisas que escrevi para a escola."

No dia seguinte, Armando mandou um e-mail, comentando em minúcias o conteúdo da pasta. "Foi por causa desse e-mail que eu lancei meus livros. Tenho certeza de que o Armando foi meu principal pilar." Em suma, para a poeta iniciante, que se sente honrada em fazer parte da rotina do veterano --como "confidente, ou cúmplice, amiga, não sei"-- Armando foi e é "de uma generosidade incrível".

"Armando é poeta o tempo inteiro. As pessoas normalmente metamorfoseiam um pouco, conseguem ter outra cara. Ele, não. Na conversa, nos e-mails, sempre tem uma imagem ou metáfora curiosa, muito especial do Armando. Ele não consegue ser protocolar nem burocrático", diz a jovem.

O episódio espelha, em vários aspectos, o encontro fundamental que fez Armando se lançar na publicação de seu primeiro livro.

Armando se debatia com a dúvida "hamletiana": publicar ou não "Palavra", sua primeira reunião de poemas, quando o pai decidiu consultar Cleonice Berardinelli, com quem tinha afinidades familiares, Armando pai ouviu da professora que o melhor a fazer seria procurar o poeta Manuel Bandeira.

A professora então fez chegar o copião ao dono da voz que fizera a cabeça do jovem poeta. Com o encontro marcado, lá se foram pai e filho até o bairro do Castelo. Armando pediu que fossem de bonde, não de carro, para que na demora ele se acostumasse à ideia. "Se não fosse papai, eu não teria ido. Eu ouvindo simplesmente Bandeira, na casa dele, com os livros dele, com tudo aquilo que eu sonhava. Era estar num paraíso infernal."

A data está registrada na dedicatória que o pernambucano fez no exemplar de "Poesia e Prosa" que Armando ficou segurando, transido, enquanto o pai ("um 'causeur' magnífico") contava a Bandeira como tinha sido o braço carioca da Semana de Arte Moderna, visto por um espectador. No frontispício, lê-se: "Ao poeta Armando, com o abraço de agradecimento pela sua visita de hoje, Manuel Bandeira, 18/7/63".

Mas ele não saiu dali com um imprimátur. "Bandeira me disse: 'Achei seu livro interessantíssimo' --eu me lembro tal qual, ele usou o superlativo. 'Mas, para você ter uma opinião mesmo sobre se você deve editar ou não, deve ir procurar contemporâneos, que vão entender melhor isso. Você procura o José Guilherme Merquior ou o Ferreira Gullar'."

O jovem temia Gullar, que era um tanto mais velho e que ele achava "bravo"; assim, optou por Merquior. O pai, de novo, fez a mediação: procurador como o pai do crítico, fez chegar os originais de "Palavra" a "Zé" --assim Armando se refere ao crítico e diplomata, então com seus 20 e poucos anos. O assertivo Zé selou a decisão e conseguiu umas sobras de papel na Editora do Autor, de Fernando Sabino: assim foi feito "Palavra".

A tiragem, "uns mil exemplares", foi distribuída de forma "mais caseira impossível", com Armando e a mãe envelopando exemplares, enviados país adentro e recebendo de volta notas publicadas em locais tão distantes do Rio como Amazonas ou Pará.

Por sugestão de Merquior, que colaborava com a revista "Práxis", enviou um exemplar do livro ao poeta Mário Chamie. "Aí o Chamie me liga um dia e me convida para a 'Práxis'. Eu, que fazia muita oposição aos concretos, fui." Assim Armando resume sua ligação com o movimento fundado por Chamie (1933-2011), de forte inclinação formal e vocação política.

"Tirando o Mário Chamie, Armando é o único nome que a gente associa com o movimento da poesia práxis, que gerou muita polêmica, manifestos, contramanifestos e relativamente pouca poesia duradoura", diz o poeta e tradutor Paulo Henriques Britto.

Muito daquela fase ficou de fora de "Máquina de Escrever", volume de "poesia reunida e revista", como define seu subtítulo, o último livro de poesia que Armando publicou pela Nova Fronteira, em 2003, nos 40 anos de sua estreia. Ao resenhar o livro, Felipe Fortuna sublinhou a estratégia do poeta:

"A angústia de Armando Freitas Filho está vinculada a sua adesão aos princípios da poesia práxis, movimento de vanguarda que marcou seus três livros iniciais. É nesse conjunto que se evidenciam as mais profundas revisões, o que forçará o estudioso a buscar nos livros originais os exemplos mais marcantes de rigor formal e engajamento político".

Entre os dois livros, no período mais duro da ditadura militar, Armando teve uma fase de reclusão. Sua primeira reação ao golpe de 64 havia sido combativa, de estar "na rua", de "debater, pugnar". Mas essa fase "muito forte" na vida do poeta foi interrompida por "dois anos de estudos em casa".

"Foi a partir de 1967, acho --não me lembro muito bem de datas. Fiquei trancado em casa, com uma espécie de fobia, estudando, porque não compreendia como tinha sido dado aquele golpe. Como tinha sido possível aquela coisa de que hoje tanto se fala, de união de classe média babaca com a pior facção militar. Como aquilo foi financiado. Eu tinha uma pequena estante só para compreender aquilo."

Recordando aquele dilatado momento de pânico, ele arrisca dizer que o que o "libertou mesmo foi o casamento". "Não propriamente, corrige: foram as mulheres. Sempre fui muito... não namorador, mas gostava de mulher: mulher que me levava. Primeiro meus pais me levavam. Depois as mulheres."

"Eu não namorava, eu conversava, compreende? E as meninas estavam acostumadas a namorar --beijo, abraço; até que o corpo acabava num certo ponto. Era um corpo, assim... menor."

Na passagem dos anos 50 para os 60, recorda Armando, o contato sexual entre os de sua condição social "era totalmente vedado", e as primeiras experiências foram com "mulheres pagas". "Eu, como minha geração toda, tive uma convivência enorme com prostíbulos --todos, não só os de luxo, não. Foi aí que o meu esquerdismo cresceu, porque conheci pessoas de outra classe social. Muitas delas pensavam que eu fosse médico, porque eu dava conselhos. Já era hipocondríaco, era de família de médico, eu vivia lendo revista médica em casa."

A abordagem do sexo em sua obra é como um misto de enquete e de embate --palavra que vem a calhar: Armando diz que briga muito com as mulheres importantes de sua vida. "Brigar é uma forma de comunicação", acredita.

"Ele sempre foi igual a como é hoje: hipocondríaco, velho e resmungão", diz uma grande amiga, a crítica Heloísa Buarque de Hollanda. "Bebezinho ele já devia ser assim. Ao mesmo tempo, tem uma autoironia absurda. Toda essa ranhetice do Armando tem um molho muito interessante --ele está brincando com isso, um pouco. Essa persona é uma construção."

A psicanalista Maria Rita Kehl, amiga há quase 30 anos, vai na mesma linha. "Escrevi um poema sobre ele, que depois ficou ruim, mas do começo eu gostava: 'Ele é um esteta das próprias limitações'. Ele faz disso um estilo. Tanto a gagueira, que quando ele declama os poemas dele não aparece, quanto a coisa do não posso comer isso, não posso comer aquilo, quanto a coisa do tenho medo disso, daquilo. Ele seduz as pessoas com as esquisitices, que provavelmente aumenta."

Ela "tem ao menos de telefonar", como ele diz, quando vai ao Rio. Rita explica as exigências do amigo: "As amizades dele são amores profundos. Não é aquela amizade de falar bobagem no bar. E ele é de uma exigência! Ele exigia provas o tempo todo. Agora nossa amizade está tão consolidada que eu não tenho mais medo. Mas a gente já brigou muito."

A terceira amizade feminina veio entre as duas e já se foi, mas de vez em quando Armando ainda se refere a ela no presente. Ana Cristina Cesar (1952-83), nome-chave da geração marginal, suicidou-se com um salto que projetou uma sombra sobre todo um livro de Armando ("De Cor", 1988).

Antes de Ana C. --com quem manteve uma relação "essencialmente de amizade" por cerca de dez anos-- se matar, falou com Armando por 40 minutos ao telefone, numa das longas conversas, "discussões constantes, telefonemas de sete horas --contínuas" que a dupla cultivava. "E a questão era se eu ia na casa dela ou se ela vinha na minha. 'Ah, eu estou enrodilhada aqui'; 'Ora, desenrodilhe-se e venha para cá'..."

Armando foi designado por ela o curador de sua obra --que organizou em cinco livros, um dos quais com Heloísa Buarque de Hollanda.

BALANÇO

Para Heloísa Buarque de Hollanda, a poesia do amigo é pessoal sem ser "confessional, desabafo". Como ela, Paulo Henriques Britto vê nos versos de Armando cada vez mais a temática do tempo que passa --"um balanço natural". Britto observa que a poesia de Armando, sempre muito "sóbria", marcada por um eu muito "fracionado", pouco subjetivado, foi rumo a um eu-lírico mais "cabralino" para outro, mais uno, "drummondiano", sobretudo a partir de "Lar," (2009), que traz reminiscências de infância e juventude.

Maria Rita Kehl não concorda. Para ela, o poeta sempre se colocou na escrita. "Ele nunca deixou de falar dele --talvez ele agora esteja menos enigmático para quem não o conhece." Tanto assim que afirma que o amigo "não faz análise porque tem medo de não conseguir mais escrever poesia. Para ela, os temas de Armando são seus "fantasmas" ("os horrores, as noites, as angústias", nos quais "chafurda para tirar mais poesia"); o erotismo; os pais; e o Rio.

O traço urbano, que Britto frisa como "uma constante", Maria Rita Kehl ressalta como uma das características mais singulares de sua poesia. "Armando consegue essa coisa que o Chico Buarque consegue muito, que é elevar a uma categoria de sublime o Rio nojento, fedido, violento. Essa poesia que tem um 'amor bandido' pelo Rio."

De Drummond, arrisca Britto, Armando herdou outra qualidade: os olhos e ouvidos atentos à geração que chega. Armando despacha a hipótese. "Isso acontece com todo poeta que vai durando, os pardais novos procuram."

Professor de letras na Universidade Federal de Minas Gerais, o poeta e ensaísta Sérgio Alcides define Armando Freitas Filho como "um poeta excepcional, da mesma estatura de todos os grandes poetas brasileiros do século 20, alguém para ser lido com Bandeira, Drummond, Cecília Meireles, Murilo Mendes, João Cabral".

A declaração põe Armando numa prateleira diferente daquela em que estão muitos de seus companheiros --a da poesia marginal. Se a associação não é de todo errada, tampouco explica a relação de Armando com o grupo, nem define sua obra.

"Eu fiz uma antologia de poesia marginal em 76 e ele não está, porque a palavra para ele é uma coisa tão importante, é um artesanato que ele tem tão sofisticado...", justifica Heloísa Buarque de Hollanda. "Na época ele estava na vanguarda práxis, que era um trabalho de tac, tac, tac, esculpir a palavra, de esculpir a sintaxe. E a poesia marginal era o contrário: era antiliterária, era o acaso. Ele jamais se identificaria com aquilo. Ele era da mesma turma, mas era obviamente um artesão da palavra, um escritor profissional já àquela época. Ele era cultura, o resto era contracultura."


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