Folha de S. Paulo


A família Mugabe sob os holofotes

Flores, talheres de prata e uma caixa de lenços de papel adornam a imaculada toalha branca. A família ora para agradecer pela refeição e diz "bon appetit" antes de atacar os legumes. Sentado na cabeceira, o pai expressa preocupação sobre os estudos do filho e os namorados da filha, e a mãe, rindo, ameaça confiscar o PlayStation.

É um almoço com a família Mugabe, um vislumbre surreal da primeira família do Zimbábue em uma situação que ninguém tinha visto até agora. Diante das câmeras de TV, Robert, a mulher Grace e dois dos filhos do casal trocam declarações de amor, discutem filosofia e religião e riem lembrando do dia em que Grace socou um fotógrafo britânico. O resultado é fascinante, e ocasionalmente espantoso. Seria mais ou menos o equivalente televisivo de contemplar um acidente de automóvel.

Grant Lee Neuenburg/Reuters - 14.jan.2010
Robert Mugabe, ditador zimbabuano, em foto de arquivo de janeiro de 2010, durante visita a Moçambique
Robert Mugabe, ditador zimbabuano, em foto de arquivo de janeiro de 2010, durante visita a Moçambique

Os portões da sigilosa Casa do Estado, em Harare, foram abertos para o entrevistador Dali Tambo, o extravagante filho de Oliver Tambo, um dos heróis da libertação da África do Sul. Ele serve como ouvinte simpático a Mugabe e admite estar "totalmente" preparado para acusações de que está limpando a imagem de um ditador e glorificando sua figura apenas alguns meses antes da realização de eleições cruciais no Zimbábue.

De fato, as pessoas que culpam Mugabe e seus 33 anos de governo pelos sofrimentos que vivem terão dificuldade para engolir o clímax do documentário em dois episódios que mostra o presidente, como sempre elegante em seu terno e gravata cinzentos, com um lenço dobrado aparecendo no bolso do peito, almoçando com sua mulher e filhos em uma elegante sala de jantar que já serviu à rainha britânica Elizabeth 2ª. Em uma rotina conhecida dos telespectadores de sua longa série "People of the South", Tambo pede que os protagonistas de seus documentários se olhem nos olhos e deixem que as emoções fluam.

Usando dreadlocks e um vestido estampado azul, Grace Mugabe, mais de quatro décadas mais nova que o marido, dá a mão a ele por sobre a mesa e declara: "Você é muito amoroso, gentil, generoso, como que me criou, e sabe que agradeço a você por tudo que pude fazer".

Apelidada "DisGrace" pelos editorialistas do país em função de seu estilo de vida visto como perdulário, ela prossegue dizendo que "tentei usar [minha posição] para beneficiar os menos privilegiados, e o que quer que eu faça é feito para complementar o trabalho que você está fazendo. Sou feliz por ser sua mulher, e me sinto abençoada por fazer parte de sua família".

Em um momento com algo de repulsivo, Mugabe, nada à vontade, responde: "Quando eu disse que queria me casar com ela [o casamento aconteceu em 1996], estava falando sério. Disse que a partir daquele momento deixaria quaisquer namoradas que tivesse, e foi o que fiz para reconhecer você e só você como minha parceira. Quer você acredite ou não, foi assim que aconteceu".

"Ela era valiosa para mim. Apreciei a transformação que você causou em minha vida, as crianças que me deu e a felicidade que elas trouxeram, a felicidade que você trouxe, e sempre serei grato por isso. E é por isso que às vezes, talvez quando você fica brava comigo ou talvez por eu não ter agido tão rápido quanto você acha que eu deveria ter agido sobre algumas coisas, prefiro não reagir. Fico quieto e deixo que você vença".

Mugabe, 89, continua a abrir o coração diante das câmeras. Ele diz que "é dessa forma que vivemos. Espero que continuemos assim e que nossos filhos se beneficiem de nossa união e que você também se beneficie do pouco que pôde aprender comigo, de nossa interação, e espero que nossos parentes possam aprender conosco como uma vida conjugal deve ser, especialmente os mais jovens, e por isso, por favor continue a amar as crianças, mas acima de tudo ame esse seu namorado chamado Robert Mugabe".

Há risadas em torno da mesa e Grace se levanta para beijar pudicamente o presidente. Mais cedo no programa, que o "Guardian" pôde assistir quase na íntegra, o casal mantém diálogos parecidos com os filhos. Bellarmine, o menino, muito parecido com o pai e usando um terno e gravata que combinam com os de Mugabe, diz que o pai sempre tem tempo para ele. "Também amo o fato de que se estou descoberto quando durmo, ele entra no quarto para me cobrir".

Mugabe descreve calorosamente a filha Bona, aluna de pós-graduação que usa um vestido com padrão de leopardo mas em tom rosa. O presidente a define como "muito obediente" e "completamente confiável", mas ralha com Bellarmine, cujo estudo em uma escola privada foi abruptamente interrompido alguns meses atrás. "Ele não me faz feliz, com a forma pela qual leva seus estudos. Deveria ser mais sério do que vem sendo".

Tambo menciona um assunto delicado ao perguntar que qualidades Mugabe procuraria no futuro marido de sua filha. Com o cenho franzido e uma voz zangada, o mais velho líder africano certamente despertaria o medo de qualquer potencial pretendente. "Quanto a essas abordagens, a sensação é de um lobo que esteja vindo capturar um de meus cordeiros".

"Mas é preciso que seja a pessoa que ela escolher. Minha esperança seria, primeiro, que ele tenha as qualidades de um bom marido para viver com ela, que ele a ame para o bem e para o mal, e não apenas por ela ser o que é agora, aquela flor tão atraente, florescendo. Ela terá filhos e muito do que hoje constitui seu charme desaparecerá, o rosto dela começará a se enrugar. Por isso ele não deve compará-la, quando chegar esse momento, a mulheres mais jovens, o que é aquilo que a maioria das pessoas faz, causando muitos divórcios".

Durante o almoço, Mugabe mexe no rosário que sempre carrega - "fui à guerra com ele" -, discute Deus e alega que continua a ser marxista, ainda que não "em termos absolutos".

Grace, enquanto isso, se diverte lembrando de ter socado um fotógrafo britânico na frente de um hotel de Hong Kong cinco anos atrás. "Eles nos viram e começaram a correr em nossa direção, e eu disse que não aceitaria aquilo, que aquilo não era modo de nos tratar. Perguntei que mal eu tinha feito, e depois corri atrás do fotógrafo e o alcancei. Comecei a bater nele. Ele me pedia para levar a câmera, mas não respondi e continuei batendo". A mesa toda ri muito com a história.

O pai de Tambo, já morto, era amigo de Mugabe mas o documentarista ainda assim precisou de três anos para conseguir a entrevista, que será exibida pelo canal sul-africano SABC3 às 20h30min de 2 de junho. Os críticos podem defini-lo como bajulador e sicofanta, mas o estilo de Tambo lhe vale acesso sem precedentes e permite que questione Mugabe sobre todos os assuntos, dos massacres dos anos 80 na província de Matabeleland ao fato de que começou seu caso com Grace quando Sally, sua primeira mulher, sofria de uma doença terminal.

ATRAÇÃO

Perguntado sobre o que o atraiu em Grace, na época datilógrafa em seu escritório, Mugabe pisca aceleradamente, como se para conter as lágrimas, e oferece uma resposta nada ortodoxa: "Não estamos falando só da atração. Depois que Sally se fosse, eu teria de procurar alguém, e enquanto Sally estava vivendo seus dias finais, ainda que pudesse parecer cruel a alguns, eu disse a mim mesmo que a questão não era só que eu precisava de filhos, mas que minha mãe também me perguntava o tempo se morreria sem ter netos".

"Por isso decidi que faria amor com Grace. Ela era uma das pessoas mais próximas a mim, e tinha passado por um divórcio, e foi isso. Tivemos nosso primeiro filho quando minha mãe ainda era viva", ele conta.

Tambo pergunta se Sally, que morreu de insuficiência renal em 1992, havia aceitado o novo relacionamento. "Contei a ela e ela ficou em silêncio, e depois disse que tudo bem, mas perguntou se eu ainda a amava. Respondi que sim. E ela disse que então tudo bem".

Sentados em cadeiras de madeiras nos jardins da Casa do Estado, construída na era colonial, os dois discutiram a vida de Mugabe, da infância como tocador de gado, com um chicote na mão e um livro na outra, à juventude em que se divertia dançando com as estudantes de enfermagem. Quando se tornou combatente para libertar o país do domínio pela minoria branca, ele terminou encarcerado por 11 anos. "Quando você está na prisão, só pensa em sair de lá, pegar os bastardos e acabar com eles", ele recorda.

Ao chegar ao poder, quando da independência em 1980, Mugabe pregava a reconciliação mas sua reputação rapidamente se desfez quando o governo começou a confiscar violentamente as terras dos agricultores brancos, a partir de 2000. Ele atribui a culpa por isso ao primeiro-ministro britânico Tony Blair, que teria renegado as promessas de bancar uma redistribuição de terras feitas sob o acordo da Lancaster House, em 1979.

"Em Thatcher era possível confiar", Mugabe prossegue. "Mas o que aconteceu depois, claro, foi diferente, com o Partido Trabalhista e Blair e companhia, em quem não era possível confiar. Não é possível compará-lo a Thatcher e aos demais. Oh, quem consegue acreditar em qualquer coisa que Blair diga? Por aqui nós o chamamos de Bliar" [trocadilho com "liar", mentiroso].

Perguntado sobre a reprovação que ele ainda enfrenta por conta da maneira pela qual a reforma agrária foi conduzida, Mugabe responde por uma comparação com a África do Sul. "Eles só o elogiam se fizer coisas que os agrade. Mandela foi longe demais em fazer o bem pelas comunidades não negras, em alguns casos à custa destas... Isso é ser piedoso demais, bom demais, é quase ser um santo".

Durante a entrevista, que durou duas horas e meia, o líder do Zanu-PF afirmou que as eleições vindouras serão pacíficas, mas não parecia um homem disposto a ceder o poder. Socando o braço da poltrona, ele retornou à feroz retórica do passado: "Há um combate a combater. Os britânicos apelam por uma mudança de regime, que eu deixe o posto. Não é um apelo que deva vir dos britânicos".

"Continua a haver sanções contra nós, e que homem, quando sua casa está sendo atacada, fugirá correndo deixando a família e as crianças sob ataque? Só um covarde... Meu povo ainda precisa de mim, e quando um povo ainda precisa de você para liderá-lo, meu senhor, não é hora de dizer adeus, não importa que idade você tenha. As pessoas dirão que você as está desertando, e não sou desertor, nunca fui, jamais pensei em desertar; é isso: continuo a querer lutar".

O "People of the South" não menciona o Movimento pela Mudança Democrática, oposicionista, e se recusa a atrapalhar o esforço de Mugabe para se apresentar de maneira reformulada, o que já levou a um abrandamento das opiniões ocidentais. Tambo, que cresceu no exílio em Londres, diz que seu programa "não é como o 'Hardtalk'", e não tem problemas quanto a seus esforços por humanizar um homem que acredita vir sendo demonizado há muito tempo.

Descrevendo Mugabe como "caloroso, carismático e muito bem-humorado", ele diz que "sinto, honestamente, muito orgulho dele, e acredito que tenha sido mal compreendido e julgado indevidamente por boa parte da imprensa. Ele cometeu erros mas em geral os africanos o verão de uma perspectiva muito positiva, em termos históricos".

Tradução de PAULO MIGLIACCI.


Endereço da página: