Folha de S. Paulo


"'Os Amantes Passageiros' é o filme mais gay que já fiz", diz Almodóvar

Pedro Almodóvar está mancando. E furioso. Ele veio a seu escritório em Madri --onde o visitante é saudado por um enorme álbum de nus de Helmut Newton-- apesar de ter passado por uma cirurgia no joelho no dia anterior, razão pela qual está mancando. Mas o que realmente o ofende é o fato de que, forçado a descansar de sua rotina normalmente frenética redigindo roteiros, ele está tendo que passar sua convalescença assistindo ao noticiário. "Há dias em que procuro não ver os jornais", ele conta. "Mas ontem eu não pude evitar. As notícias são todas horríveis."

O dia que Almodóvar passou em frente à televisão consumindo histórias intermináveis sobre as dores econômicas do país, que já deixaram um quarto dos espanhóis desempregados, o deixou indignado. "Acho que o país como um todo está preocupado com a possibilidade de agitação social", ele me diz. "Eu estou, com certeza. A cada dia que passa, tenho a impressão que as provocações aumentam." Mas ele me tranquiliza: "Isso não quer dizer que eu esteja incitando alguém à violência. Muito pelo contrário. Eu aconselharia todos a reagirem, mas da maneira mais pacífica possível."

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O cineasta espanhol Pedro Almodóvar, fotografado pelo francês Ludovic Carème
O cineasta espanhol Pedro Almodóvar, fotografado pelo francês Ludovic Carème

Sendo Almodóvar o mais famoso diretor de cinema da Espanha --autor premiado com o Oscar de dramas como "Fale com Ela" e "Volver", em registros que variam do melancólico ao subversivo ou simplesmente conturbado--, é fácil imaginar sua indignação sendo expressa de maneiras soturnas. Basta pensar em "A Pele que Habito", seu filme mais recente e possivelmente mais assustador. Mas seus planos são outros. "Gosto da ideia de ajudar as pessoas a se divertirem, porque o ambiente está tão, tão árido neste momento", ele diz.

E assim o criador de "Abraços Partidos" e "Má Educação" nos oferece seu trabalho mais recente: uma comédia amalucada que acontece num voo transatlântico, repleta de sexo oral nas alturas e comissários de bordo dançando afetadamente ao som das Pointer Sisters (a canção "I'm So Excited", que virou marca registrada do grupo, inspira o título inglês do filme, que em espanhol é "Los Amantes Pasajeros"). E os resultados das bilheterias na Espanha indicam que Almodóvar avaliou o clima do país perfeitamente; o desempenho do filme em seu fim de semana de lançamento foi o melhor que o diretor já conseguiu.

Já ouvi o filme ser descrito em Madri, em tom aprovador, como uma "mariconada", uma espécie de brincadeira gay escrachada. Primeiro retorno de Almodóvar à comédia pura em 25 anos, desde "Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos", "Os Amantes Passageiros" é uma obra de entretenimento kitsch e extravagante que o diretor descreve como "o filme mais gay que já fiz". É também um retorno ao estilo de seus primeiros sucessos, quando ele surgiu no cenário do cinema como criador exuberante de transgressões férteis, divertidas e hedonísticas. As gags incluem uma clarividente que perde a virgindade ao montar sobre outro passageiro que está dormindo, mas com uma ereção, e as manchas de sêmen deixadas no rosto de um comissário de bordo depois de ele se trancar no banheiro com o comandante.

Mas o filme também pode ser interpretado como metáfora da própria Espanha, quebrada e em recessão. "Eu quis criar uma comédia maluca, uma coisa escapista", diz Almodóvar. "Mas é verdade que há coisas que ecoam o momento atual." Um avião circula sem rumo no céu, com seu trem de pouso danificado, aguardando o sinal para fazer um pouso de emergência. A tripulação e os passageiros da primeira classe afogam as mágoas, confessam seus pecados e fazem sexo movido a mescalina, enquanto os da classe turística dormem um sono induzido por drogas, sem nada saberem.

O próprio Almodóvar se surpreendeu ao ver como as surreais histórias passadas dos personagens principais do filme --entre elas, um banqueiro desonesto que está fugindo do país e uma garota de programa que afirma possuir um vídeo mostrando imagens do rei em situação comprometedora-- encontram eco cada vez maior com notícias que os espanhóis lêem diariamente nos jornais.

"Sempre houve a metáfora de uma Espanha que não sabe para onde vai, não sabe onde aterrissar, quem vai estar no comando ou quais serão os perigos", diz o diretor. Mas ele não previu a onda de escândalos de corrupção que desde então vem atingindo desde o conservador Partido Popular, do primeiro-ministro Mariano Rajoy, até a família do rei Juan Carlos. "Desde que o rodamos, o filme só fez ganhar mais relevância metafórica", ele diz.

Os cabelos espessos e eriçados de Almodóvar hoje são totalmente grisalhos, e seu rosto ostenta uma barba igualmente cinzenta. Ele a exibe com a mesma irreverência que Albert Einstein, por exemplo --mas, mesmo assim, como seu joelho, é um sinal da idade que avança. Na realidade, existe em Almodóvar um quê de um roqueiro envelhecido, como se ele não conseguisse despir-se por completo do espírito de rebeldia juvenil. Ele exala energia verbal --eu só teria precisado de duas ou três perguntas para fazer uma entrevista de uma hora--, sem, contudo, ser arrogante ou dominador.

Após décadas sendo elogiado e adorado, teria sido muito fácil ele perder a modéstia. Um pedido de última hora (que o levou a sair correndo de seu escritório depois de termos encerrado a entrevista) para que eu não fizesse parecer que ele está falando mal da Espanha mostrou que Almodóvar ainda se preocupa com o que as pessoas pensam a seu respeito.

O próprio Almodóvar é visto há muito tempo como símbolo de uma Espanha mais otimista e brincalhona, aquela que em meados dos anos 1970 emergiu de décadas de sombras e restrições morais sob a ditadura de Franco, tornando-se uma democracia vibrante. Ele nasceu nas planícies avermelhadas de La Mancha, o lar de "Dom Quixote". Seu pai, Antonio, era comerciante de azeite e vinhos, que vendia no lombo de um burro. Mas Pedro não se enquadrava na versão paterna do mundo masculino.

Sua mãe, Francisca, que apareceu ocasionalmente em seus filmes antes de morrer, em 1999, foi seu ponto de referência principal. Ela ganhava algum dinheiro escrevendo cartas para seus vizinhos analfabetos. Como Almodóvar, gostava de enfeitar. "As improvisações dela foram uma grande lição para mim", escreveu o cineasta após a morte dela. "Me mostraram a diferença entre ficção e realidade e como a realidade necessita da ficção para ser mais completa, mais agradável, mais vivível."

O irmão de Almodóvar, Agustín, que é também seu produtor, descreveu certa vez o vilarejo natal deles, Calzada de Calatrava, como "o tipo de lugar onde as pessoas passam a vida inteira economizando para terem uma lápide decente no cemitério". O próprio Almodóvar já o descreveu como "um lugar árido onde ninguém entendia a sensualidade, a alegria de viver ou sequer a ideia das cores".

Sua vida profissional inteira pode parecer uma revolta contra isso, embora muitos de seus fãs inveterados afirmem que seu melhor filme é "Volver", uma história sobre superstição e morte rodada numa cidade próxima a Calzada de Calatrava e com Penélope Cruz no melhor papel que já representou.

Uma das cidades mais entediantes da Espanha, Ciudad Real, fica perto do lugar onde Almodóvar passou sua infância, e nela foi rodada boa parte de "Os Amantes Passageiros" --num aeroporto abandonado que é um dos célebres elefantes brancos arquitetônicos da Espanha, parte das ruínas deixadas por uma década de extravagância, corrupção financeira e ilusões de grandeza política.

"Esse aeroporto custou mais de €1 bilhão para ser construído e é completamente inútil", diz o diretor. "Na pista de pouso mais comprida da Espanha, só se vêem alguns coelhos correndo de um lado a outro. Um ministro redigiu uma lista de 17 aeroportos como esse em La Mancha. Eles representam a megalomania e falta de escrúpulos de nossos políticos e financistas nos últimos dez anos."

O aeroporto internacional, que se supunha fosse receber 2 milhões de passageiros por ano, acabou afundando o banco de poupança local. "De alguma maneira, convenceram os manchegos que pessoas de todo o mundo iam querer voar diretamente para o coração de La Mancha", diz Almodóvar. "Mas quem é que quer viajar para lá?"

A jornada do próprio Almodóvar de certa maneira é um reflexo da trajetória de seu país. Ele chegou à cidade grande ainda na adolescência, vivendo uma explosão libertadora após o ambiente claustrofóbico da vida no vilarejo e nas escolas comandadas por padres católicos. E na década de 1980, quando a chamada "movida madrilenha" --um movimento anárquico, farrista, do tipo vale-tudo-- incendiou a vida noturna da capital espanhola, Almodóvar se tornou seu mestre de cerimônias e ícone duradouro. Ele é também um dos poucos produtos culturais verdadeiros do movimento.

"Estávamos inebriados de otimismo e liberdade", ele recorda. "Não tínhamos consciência real de que a Espanha, um país tradicionalmente tão dividido e fratricida, estava dando um salto adiante tão enorme. Eu pude reinventar minha vida como se tivesse nascido de novo." Havia algo de inocente, até mesmo ingênuo, naquele tempo, não obstante sua natureza declaradamente hedonista. Almodóvar começou a fazer curtas-metragens em super-8, muitos sem som, mas repletos de sexo, com títulos como "A Queda de Sodoma".

SITUAÇÃO PIOR

Seu primeiro filme comercial, "Pepe, Luci e Bom", foi escrito em seu tempo livre de um emprego numa companhia telefônica. Ele tirava licença sem vencimentos para ir filmar, depois retornava ao emprego e chorava. Mas tinha trocado definitivamente as restrições morais da Espanha rural e católica pela liberdade pessoal e artística.

"Agora estamos todos em situação pior", diz o cineasta em tom desanimado. "E nos tornamos pessoas piores, também. Se um diretor quisesse começar como eu comecei nos anos 1980, seria impossível. Há concorrência demais. Não quero soar saudosista, mas é que tudo mudou." Ele próprio faz parte dessa mudança. O homem que costumava trajar meias arrastão e minissaia de couro para cantar numa banda de glam-punk hoje faz aulas de ioga.

Suas irmãs ainda vão à capela de Calzada de Calatrava para acender velas e rezar, toda vez que ele é indicado a um Oscar. As orações funcionaram em 2000, quando "Tudo Sobre Minha Mãe" recebeu o Oscar de melhor filme em língua estrangeira, e novamente em 2003, quando Almodóvar ganhou o prêmio de melhor roteiro original por "Fale com Ela", uma honra rara para um diretor de língua não inglesa. Mas alguns espanhóis rejeitam o tratamento de celebridade dado a Almodóvar pelos críticos de Nova York e o público do Festival de Cannes; não entendem como esse aparente excêntrico --na realidade um profissional disciplinado e fortemente motivado-- possa ter passado a representar a Espanha perante estrangeiros.

Almodóvar entrou para a lista de outros grandes artistas inovadores, incluindo Pablo Picasso e Salvador Dalí, que conquistaram respeito maior no exterior que na própria Espanha.

Um estudo realizado por acadêmicos espanhóis concluiu que seus personagens passam 14% do tempo sob o efeito de álcool ou drogas (e "Os Amantes Passageiros" só pode ter elevado essa porcentagem). Ao todo 170 personagens, em sua maioria femininas, seriam usuários regulares de drogas. Almodóvar diz que o estudo o deixou com "uma sensação kafkiana de medo, repulsa, espanto, fúria e indignação", pois não há nada que ele rejeite mais que o moralismo puritano. Mas leva a ética política muito a sério: certa vez proibiu as companhias de Silvio Berlusconi de distribuir seus filmes na Itália.

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Cena do filme
Cena do filme "Os Amantes Passageiros", de Pedro Almodóvar

Mesmo José Luís Rodriguez Zapatero, o ex-premiê socialista que fez da Espanha o terceiro país no mundo (depois da Holanda e Bélgica) a endossar o casamento gay, em 2009, o decepcionou, ao dobrar-se às exigências dos profetas da austeridade. "Não se trata de decepção, apenas. Seus últimos quatro anos foram um desastre monumental."

Almodóvar também é célebre por colocar personagens femininos ao centro de seus filmes. Penélope Cruz pode fazer apenas uma ponta ao lado de Antonio Banderas em "Os Amantes Passageiros", adotando um sotaque andaluz pesado, mas sua presença reforça o fato de que foi Almodóvar quem fez sua carreira e explica porque ele hoje tem uma longa lista de atrizes famosas suplicando por papéis em seus filmes. Eva Mendes é apenas a mais recente a admitir que já pediu que ele a dirigisse.

"Todas as grandes atrizes de minha vida andam me pedindo papéis. Há um número infinito", o diretor admite. Ele acha que isso acontece porque ele escreveu tantos papéis ótimos para mulheres na década de 1990, uma época em que Hollywood ignorou suas melhores atrizes.

"Elas percebem que eu não apenas escrevo bons papéis para mulheres, mas trabalho duro com as atrizes. Grandes atrizes muitas vezes são condenadas a trabalharem sozinhas sobre seus papéis. Quando grandes atrizes que não falam espanhol me pedem papéis, imagino que pensem em mim como um diretor que passa mais de metade de seu tempo durante a rodagem e pré-produção trabalhando com os atores. Pensam 'quero alguém que me force a trabalhar, que me obrigue a saltar sem paraquedas, mas que esteja ali, cuidando de minha segurança'. Nunca fiz um filme falado em inglês, mas uma razão para fazê-lo seria a possibilidade de trabalhar com algumas dessas atrizes que eu adoro."

Um dos vários roteiros semiprontos no qual ele continua a trabalhar ocasionalmente é de um filme que seria feito em Nova York, mas ele admite que as chances de o trabalho vir a ser rodado estão diminuindo. "Estou um pouco velho para mudar de língua e cultura", explica. "Talvez já seja tarde para começar a tentar algo assim." Ele descreve "Os Amantes Passageiros" como uma comédia mediterrânea, com semelhanças com as comédias italianas do tipo em que Sophia Loren perdia a calma. "Temos línguas afiadas, mas isso não significa que realmente queremos que algo de ruim aconteça à pessoa com quem estamos falando", explica.

"Há uma ausência de vergonha e inibição no modo como os personagens agem e falam. Eles gritam, perdem a compostura, esquentam a cabeça e dizem exatamente o que estão sentindo. Não é que sejamos mais sinceros que os britânicos ou que estes sejam mais hipócritas que nós, é apenas que nós somos menos capazes de ficar de boca fechada. E isso é ótimo para uma comédia."

Com mais de uma dúzia de filmes de sucesso e dois Oscar, poderíamos imaginar que Almodóvar estivesse imune às farpas atiradas por alguns críticos. Mas não é esse o caso, evidentemente. Uma vendeta famosa entre ele e o crítico de cinema Carlos Boyero, do "El País", levou o diretor a pedir ao jornal que enviasse outro jornalista ao Festival de Cannes em 2009.

Na realidade, ler uma resenha venenosa de Boyero antes de assistir ao filme mais recente de Almodóvar já se tornou parte da diversão para alguns cinéfilos espanhóis. Escrevendo sobre "Os Amantes Passageiros", Boyero se queixou do humor "infantil" do filme e o comparou aos trabalhos bregas de Mariano Ozores, prolífico diretor espanhol de comédias apimentadas dos anos 1970.

Almodóvar já leu a resenha? "Ainda não", responde. Ele lia os textos de Boyero, isso é fato sabido; há uma conhecida troca de cartas com o ombudsman de "El País" que ainda pode ser lida em seu blog. "Nos últimos 30 anos, uma das funções da vida de Boyero tem sido avacalhar meus filmes", comenta Almodóvar. "Acho que o 'El País' não deveria deixá-lo usar seu emprego para fazer isso."

Mas, segundo ele, é o Reino Unido que vem demonstrando grande relutância em se abrir a ele; tanto a crítica quanto o público britânicos inicialmente se mostraram avessos a olhar mais além do aspecto sexual escandaloso de muitos de seus filmes. "Ultimamente ando fazendo mais sucesso com os britânicos", ele me conta. "Eles se cansaram de ficar chocados com meus filmes e estão achando mais fácil aceitá-los."

Os espectadores britânicos de "Os Amantes Passageiros" podem ter dificuldade em entender as alusões indiretas à crise espanhola, mas terão suas próprias preocupações com o futuro econômico. Quem sabe o humor escrachado de Almodóvar também os tire um pouco de seu baixo astral.

Tradução de CLARA ALLAIN.


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