Folha de S. Paulo


Diretora do jornal "Le Monde" promete uma "grande revolução"

Em seu escritório no pavimento mais alto da sede do "Monde", em Paris, Natalie Nougayrède, a primeira mulher a comandar o diário de referência do jornalismo francês, admite ter chegado ao posto em um momento emocional para o jornal nacional de maior circulação na França.

Depois de uma década de dívidas paralisantes e de um quase colapso, o "Le Monde" foi adquirido dois anos atrás por um grupo de três empresários - Pierre Bergé, ex-sócio de Yves Saint-Laurent; Xavier Niel, magnata das telecomunicações que fez sua fortuna bilionária com serviços de chat erótico; e Mathieu Pigasse, banqueiro.

Prometendo proteger a independência editorial do prestigioso jornal de centro-esquerda, eles bancaram a reforma editorial de um jornal que, no passado, era famoso por sua prosa um tanto insípida e por não publicar fotos.

O jornal lançou novos suplementos, incluindo uma premiada revista de fim semana, "M", e um suplemento científico publicado aos sábados que conquistou muita popularidade. A publicação deu lucro nos dois últimos anos, ainda que como sempre no problemático mercado de jornais francês, muito menor que o britânico, ela precise lucrar mais. O comandante da renovação era o benquisto e dinâmico novo editor do "Monde", Erik Izraelewicz. Mas em novembro do ano passado, enquanto fechava a edição diária do jornal, Izraelewicz, 58, sofreu um ataque cardíaco na redação e morreu.

"Perder seu editor é traumático, foi um acontecimento muito triste para todos", diz Nougayrède. Em março, ela foi selecionada para o posto em uma votação na qual conquistou o apoio de mais de 80% dos jornalistas. ("Creio que havia a ideia de que, tudo bem, podíamos contemplar o futuro, agora, definir uma nova missão e preservar os fundamentos deste jornal, especialmente sua independência".) No mês passado, a questão da independência do jornal quanto aos acionistas ressurgiu na primeira crise da gestão de Nougayrède, quando Bergé criticou a decisão dela sobre publicar um anúncio de oposição ao casamento gay.

Bergé, que apoiava o projeto de lei do governo para permitir casamentos homossexuais, fez diversos comentários furiosos via Twitter quando o jornal publicou um jornal de página inteira veiculado por uma campanha de oposição ao casamento gay, e sugeriu que as pessoas que haviam aceitado o anúncio não eram dignas de trabalhar no "Monde".

Nougayrède diz simplesmente que o anúncio respeitava as normas publicitárias do jornal e que o veículo havia produzido "cobertura absolutamente independente e de boa qualidade" quanto ao debate sobre o casamento gay. "Os acionistas podem ter opiniões diferentes, histórias pessoais diferentes. São personalidades fortes, mas nós levamos adiante a nossa parte do trabalho, Eu dirijo o jornal. Sou responsável por sua independência, seu conteúdo de alta qualidade e pelo bem-estar de sua equipe de jornalistas. É isso que vou defender".

Nougayrède acrescenta que os acionistas não têm controle sobre a política editorial. "Há uma carta de princípios que dispõe que os acionistas não devem tentar influenciar ou transformar o conteúdo editorial, que este é protegido".

Nougayrède é, de muitas maneiras, alguém que veio de fora da estrutura padrão do "Monde". Jamais havia exercido papel administrativo ou editorial na bizantina hierarquia do diário, lançado depois da libertação da França, em dezembro de 1944, como uma voz independente, aproveitando o layout, a tipologia e os escritórios de um jornal extinto que terminou comprometido por sua colaboração com os ocupantes nazistas.

Em lugar disso, Nougayrède se define como uma correspondente estrangeira "da categoria batalhadora, com lama nas botas", que cobriu a Europa Oriental e a Rússia de Putin, conquistando prêmios por seu trabalho quanto ao sítio de forças governamentais russas a uma escola ocupada por rebeldes em Beslan e pela cobertura do conflito na Tchetchênia.

Ela retornou à sede do jornal em 2005, onde rapidamente se estabeleceu como a mais vigorosa correspondente diplomática em Paris. Seu questionamento duro e persistente e a falta de deferência que demonstrava em meio ao jornalismo aconchegado do mundo diplomático irritaram o então ministro do Exterior francês Bernad Kouchner a ponto de ele ordenar que ela fosse expulsa de uma recepção a embaixadores.

A visão de Nougayrède para o "Monde" tem por base o renitente distanciamento que o jornal mantém com relação aos escalões mais elevados do Estado, em um país no qual os jornalistas e políticos sempre foram vistos como muito próximos. "Isso pode parecer óbvio, mas eu achava importante demonstrar que, em termos de processo noticioso, não haveria amizade com as pessoas que estão no poder, e que você não deve manter relacionamento amigável a ponto de criar dependência ou erodir sua independência jornalística".

Ela quer proteger o status do "Monde" como instituição nacional, apostando no jornalismo investigativo e em reportagens longas e de alta qualidade - no mês passado, uma série sobre evasão de impostos via investimentos offshore, realizada em colaboração com o "Guardian" e outros jornais, reforçou consideravelmente as vendas do "Monde" e o tráfego do site do jornal.

"Em um momento no qual sabemos que todos estão sendo inundados de informações de todas as possíveis fontes, em que as agências de relações públicas estão muito ativas no campo político e econômico, é importante que exista uma referência", ela diz. "É importante para mim que produzamos reportagens originais e análises originais, e que sejamos muito fortes quanto aos fatos. Não haverá versões aproximadas. Quero que tudo que produzimos seja verificado, sólido. Para a imprensa anglo-americana, a regra pode parecer banal, mas considero útil reforçar esse tipo de abordagem aqui na França, onde a tradição mais forte é a de comentário, não a noticiosa. A história dos jornais franceses sempre girou em torno da tomada de posições políticas, e de uma profusão de comentários. Sem abandonar a ideia de que também tomaremos partido e expressaremos nossa posição sobre certos assuntos, quero que o 'Monde' coloque seu primeiro foco em notícias fortes, substanciosas, e em fatos verificados".

WEB

A primeira grande decisão de Nougayrède foi lançar um substancial caderno diário de economia, Éco & Entreprise, na semana passada. O "Monde" tem forte leitura entre os profissionais de colarinho branco e os executivos financeiros e de negócios, mas ao contrário de rivais como o "Figaro", de direita, não contava até agora com um caderno dedicado a eles. A nova seção é eclética e dá destaque à equipe de correspondentes do "Monde", a maior entre os jornais franceses, com trabalhos investigativos e reportagens sobre os mercados emergentes e novos setores da tecnologia. "Não existem muitas questões nas notícias mundiais hoje que não tenham conexão com a economia", diz Nougayrède.

O maior desafio para ela é a Web. Como os demais jornais franceses, o site do "Monde" tem uma combinação de conteúdo gratuito e pago, com artigos aprofundados, análises, material de arquivo, vídeos e investigações disponíveis aos assinantes por 15 euros mensais. Com mais de dois milhões de unique visitors, o site do jornal é o maior do setor informativo francês. No momento, o site conta com 43 mil assinantes digitais e 67 mil leitores com assinatura combinada de mídia impressa e digital. Com circulação em papel de cerca de 314 mil exemplares e 1,9 milhão de leitores ao dia, o objetivo do jornal nos próximos anos é triplicar ou quadruplicar o número de assinantes de seu site.

No mês passado, o "Monde" reformulou sua seção online para assinantes, com novos recursos gráficos e de vídeo, navegação horizontal, e acesso exclusivo a artigos antes que eles sejam publicados em papel. O novo botão de "leitura zen", que reduz o congestionamento visual da página, se provou popular. Os arquivos digitalizados do jornal, que remontam a 1944, com fotos e pacotes de fácil leitura ligados a importantes eventos do passado, também vem conseguindo sucesso.

"Isso também diz alguma coisa sobre como as pessoas precisam ter referências, no mundo moderno", ela aponta, "não só para saberem as notícias dos últimos dois minutos mas para que possam contemplar o passado e descobrir o contexto do que quer que esteja acontecendo". A próxima tarefa de Nougayrède, que não será fácil, envolve fundir as equipes do jornal e do site, que continuam operando em separado. "Isso será uma grande revolução no 'Monde', e vamos realizá-la passo a passo".

Além de cortejar leitores de fala francesa na África e outras regiões, Nougayrède - que é bilíngue por vivido parte da infância e juventude no Reino Unido e Canadá - quer atrair leitores anglófonos, com uma seleção de artigos traduzidos no site. "Há uma curiosidade sobre a França. Não quero dizer que a França continua influente como há 30 ou 40 anos, porque, como no caso das demais grandes nações europeias, nossa importância agora é mais relativa na nova ordem mundial. Mas acredito que exista um reconhecimento de que a cena intelectual, jornalística e política da França tenha o que dizer quanto às grandes questões internacionais. Não estou falando de uma parcialidade política, mas de uma maneira diferente de contemplar os eventos".

A versão em papel continuará a existir para sempre? "Não creio que devamos descartar os jornais em papel", ela responde. "Quem pode dizer o que acontecerá em 50 anos? Mas acredito que ainda tenham um futuro - só que precisarão ser mais pertinentes, oferecer mais qualidade e seletividade".

Tradução de PAULO MIGLIACCI.


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