Folha de S. Paulo


Restaurantes de São Paulo criam nova cozinha brasileira

No mês passado, Alex Atala entrou para a lista das cem pessoas mais influentes do mundo compilada pela revista "Time", por ter assumido a "imensa tarefa de definir uma melhor cultura gastronômica para a América Latina. Sua filosofia de utilizar ingredientes nativos brasileiros em receitas de 'haute cuisine' fascinou o continente".

Esta semana, seu restaurante em São Paulo, o DOM, ficou em sexto lugar no ranking dos melhores restaurantes do mundo (ocupava o quarto posto no ano passado), como o mais bem colocado dos restaurantes da América do Sul.

Como um ex-roqueiro punk, DJ e baladeiro confesso que se tornou chef quase por acidente (ele estava viajando sem rumo pela Europa e se inscreveu em um curso de gastronomia na Bélgica para obter um visto), vindo de um país com pouca reputação no cenário gastronômico internacional, mudou a forma pela qual as pessoas pensam sobre a culinária brasileira?

Javier Lizón/Efe
O chef brasileiro Alex Atala durante sua palestra
O chef brasileiro Alex Atala durante sua palestra "Brasil pré-Portugal" no fórum gastronômico Madrid Fusión

Atala diz que seu momento de inspiração veio ao perceber que, a despeito de seu treinamento na França e Itália, ele, como brasileiro, jamais seria capaz de dominar as culinárias desses países (que comandam o panorama gastronômico em São Paulo) e ao mesmo tempo ser um chef brasileiro. Mas ele talvez pudesse produzir a melhor culinária brasileira que já foi criada. Além de ter dedicação e confiança em seu próprio talento, ele contava com a vantagem de um país abençoado por uma abundância de ingredientes naturais únicos.

Na culinária brasileira, embora a matéria-prima --carnes, peixes, frutas, legumes-- seja tão boa e variada quanto a de qualquer outro país do mundo, quase todos os produtos industrializados encontrados no varejo são genéricos e sem graça --frios, laticínios, óleos, cerveja e até mesmo o café. Ainda que o Brasil produza um imenso volume de café, seu sabor costuma ser horrível.

Por isso, Atala parou de imitar a culinária que depende de produtos importados e substitutos precários e buscou inspiração nos recursos naturais de seu país, especialmente os da Amazônia. O maior ecossistema do planeta é origem de uma cornucópia de ingredientes (e muitas espécies de plantas ainda não descobertas), e é de lá que ele abastece sua despensa.

Assim, no cardápio do DOM há diversos pratos excêntricos e maravilhosos provenientes da Amazônia. O tucupi é um molho amarelo extraído de uma raiz de mandioca que primeiro precisa ser cozida para remover toxinas. A folha do jambu anestesia os lábios e a língua e, segundo Atala, "torna todos os sabores mais intensos". A Amazônia também abriga alguns dos maiores peixes de água doce do planeta, e um mel maravilhoso que, pelo menos de acordo com a agência brasileira de fiscalização de alimentos, na realidade não é mel.

Estou conversando com Atala no DOM, e ele me convida a experimentar uma colherada do mel. O gosto é tão bom que imediatamente peço uma segunda colherada.

Atala sorri, como se para dizer que eu acabo de provar seu argumento: "Sirvo esse produto ilegalmente, porque na realidade não se trata de mel, por não ter a viscosidade necessária. É líquido demais. Não é uma loucura? O mel brasileiro é produzido por abelhas importadas da Europa séculos atrás, mas temos abelhas locais, e sujeitos na Amazônia que produzem essa maravilha... ilegalmente".

Isso resume o que Atala busca. Não só atrair a atenção do mundo para a diversidade da culinária brasileira mas ajudar os produtores em pequena escala como o pessoal que faz mel na selva. Ele passou a ser visto como uma voz emergente no movimento ambiental, para além de seu renome como chef: trabalha com comunidades indígenas, mostrando a elas como os ingredientes que as cercam podem ser importantes. "Nós [brasileiros] estamos começando a perceber que a floresta é um ativo importante", diz, "mas para que possamos usá-la, precisamos conservá-la".

Essa missão o levou a uma viagem culinária pelo Brasil e fez do DOM uma vitrine para os ingredientes brasileiros. (O nome do restaurante é a sigla para a expressão latina "deo optimo maximo" --"a Deus, que é bom e grande", e significa que a casa quer ser o lar da melhor e maior gastronomia.) "Sinto-me responsável por mostrar a espantosa diversidade de nossos produtos."

Quando pergunto a Atala de quantos entre os 26 Estados brasileiros ele obtém ingredientes, ele não sabe a resposta, mas gosta muito da pergunta. "Nunca contei --mas imagino que de todos eles!"

O cardápio de seu restaurante oferece vinhos e ostras do sul do país, uma região de clima temperado, e novas variedades de arroz (uma delas uma variedade miniaturizada que se parece um pouco com cuscuz, e outra escura e crocante), que ele desenvolveu com um agricultor do Estado de São Paulo. Mas são as ervas, frutas, flores, peixes e até mesmo insetos obscuros da bacia amazônica que roubam o espetáculo. E é assim que me vejo contemplando um pratinho contendo duas formigas cruas e não temperadas por sobre um cubo de abacaxi com 2,5 centímetros de aresta.

"Não se preocupe, estão mortas", o garçom explica. "Coma-as com os dedos".

Dou uma mordida e, para minha surpresa, sinto um sabor parecido com o de capim-limão, mas mais intenso, como se fosse essência de capim-limão.

Atala me conta mais tarde que descobriu as formigas em uma de suas muitas visitas à Amazônia. "Eu estava com a tribo baniwa, no estremo norte, perto da fronteira venezuelana. O interessante é que eles não comem essas formigas em busca de proteínas, como é comum em outras culturas que consomem insetos, mas como um petisco, quase como um doce".

As formigas são o prato mais espantoso em um cardápio que é puro teatro culinário. Sua "maçã de coco" --o centro esponjoso e amarelo de um coco germinado, que não costuma ser comido-- é servida com algas. Só consigo descrever o sabor como algo que tenha sido trazido pela maré a uma praia tropical. O prato é acompanhado não por vinho mas por cachaça, a bebida fermentada de cana-de-açúcar que serve de base à poderosa caipirinha brasileira. A versão de Atala para um espaguete à carbonara é igualmente espirituosa, com o macarrão substituído por fios crocantes de palmitos, um ingrediente brasileiro clássico.

Como em qualquer outro restaurante dessa qualidade, os preços são tão insanos quanto algumas das receitas do menu de degustação --mas também há um almoço de três pratos por menos de 30 libras. E é justo dizer que alguns ingredientes vêm de regiões brasileiras tão remotas que Atala gasta mais dinheiro com seu transporte do que na compra dos produtos.

Nos últimos dez anos, essa nova cozinha brasileira inspirou outros chefs brasileiros, mais em São Paulo do que em sua grande rival, o Rio de Janeiro. São Paulo é onde está o dinheiro, e com ele a inovação.

"Em São Paulo, a gente trabalha; no Rio todo mundo vai à praia", é o que todo mundo diz por aqui, mas isso propicia aos paulistanos uma vida noturna vibrante e uma cena gastronômica que a glamourosa cidade rival só pode invejar.

A alguns quarteirões de distância do DOM mas ainda nos Jardins, o bairro mais elegante da cidade, a chef Helena Rizzo e seu marido espanhol Daniel Redondo comandam o Maní, que também entrou na lista dos 50 melhores restaurantes mundiais, no 46º posto.

O Maní é mais rústico e mais informal que o DOM --mobília simples, paredes caiadas de branco e um teto de folhas secas sobre uma estrutura de madeira-- mas a comida é igualmente aventurosa. Um dos pratos mais conhecidos da casa é mandioca cozida com leite de coco e molho tucupi.

Divulgação
Helena Rizzo e Alex Atala no Maní, onde promoveram jantar a quatro mãos com ingredientes de produtores locais
Helena Rizzo e Alex Atala no Maní, onde promoveram jantar a quatro mãos com ingredientes de produtores locais

O Maní também oferece uma versão esperta da feijoada, o prato nacional brasileiro, na qual os "feijões" na realidade consistem de essência concentrada de feijão acondicionada em um invólucro de gelatina em formato de feijão, e acompanhados por uma salada Waldorf com nozes caramelizadas, maçãs feitas de gelatina e um "aipo" feito de sorvete. A ideia pode parecer pretensiosa, mas o sabor é absolutamente delicioso.

Ver jabuticaba no cardápio me desperta lembranças felizes. Conheci essa fruta preta ou púrpura escuro 20 anos atrás em minha primeira visita ao Brasil. Encontrei uma jabuticabeira em uma viagem ao interior de São Paulo, enquanto eu estava sentado, chapado, em uma árvore próxima. Comi suas frutas direto do galho, e jamais havia experimentado algo tão exótico em minha vida.

BOSSA NOVA

Mas nunca tinha visto jabuticabas em um cardápio, até a visita ao Maní. Lá, essa fruta tipicamente brasileira é servida em forma de uma sopa fria de cor fúcsia, acompanhada por camarões fervidos na cachaça. Como tudo mais que experimentei no Maní, não só o sabor era excelente como a apresentação era muito bonita, com um toque leve e elegante.

Josimar Melo, crítico de gastronomia da Folha, descreveu o movimento como "cozinha bossa nova", comparando-o ao movimento musical que renovou a música brasileira no final dos anos 50, combinando uma forma estrangeira, o jazz, a uma forma local, o samba.

"Hoje há algo parecido acontecendo com a comida brasileira", ele diz. "Como na bossa nova, uma nova geração de chefs não se limita a copiar as influências estrangeiras; em lugar disso, eles estão aplicando técnicas europeias aos ingredientes brasileiros."

É uma analogia inteligente, vinda de um homem que leciona sobre história da culinária em uma universidade de São Paulo. Digo a ele que não vim só para experimentar os restaurantes caros. Quero provar a comida paulistana tradicional.

Josimar sorri. "Não existe! Até o final do século 19, São Paulo era pouco mais que uma aldeia, e por isso a história da comida de São Paulo é a história de seus imigrantes".

A imigração fez de uma sonolenta cidade que tinha 31 mil habitantes em 1872 a megalópole de 21 milhões de moradores que vemos hoje, a nova maior cidade do mundo e o mais rico e importante polo econômico da América do Sul.

Imigrantes da Itália, Portugal, França, Síria, Líbano e Alemanha influenciaram a cultura e a culinária da cidade, mas o que surpreende muitos dos visitantes a São Paulo é que ela abriga também a maior comunidade japonesa do mundo fora do Japão. Os japoneses começaram a chegar em 1907, para trabalhar nas florescentes plantações de café, e agora são mais de um milhão, se incluirmos os nisseis, os brasileiros de ascendência nipônica. Como resultado, o sushi é a resposta paulistana ao chicken tikka masala --onipresente e amado por todos.

Josimar sugere alguns lugares bem além de minha faixa de preço mas diz que, para experimentar a São Paulo japonesa do passado, devo tentar o Sushi Yassu, na Liberdade, o bairro japonês da cidade. O restaurante fica na rua principal do bairro, que à maneira de muitas Chinatowns foi orientalizada com lanternas de papel e placas em japonês e ostenta muitas lojas vendendo comida e bugigangas japonesas.

Com seu piso de tatame, paredes de papel e atmosfera pacífica, o Sushi Yassu parece um pedaço do Japão do passado em uma cidade que se arremessa velozmente ao mundo moderno. E o combinado de sushi, sashimi e tempura servido em uma tábua oferece bom valor pelo preço.

Dobrando a esquina fica o Lamen Aska (rua Galvão Bueno, 466), outras das tradicionais casas de ramen da cidade, esta servindo sopa miso por menos de cinco libras e um prato de gyozas (bolinhos japoneses de carne) por ainda menos.

Termino a noitada na Choperia Liberdade (rua da Glória, 523), uma casa de karaokê fabulosamente kitsch, iluminada por lanternas chinesas e ostentando aquários de peixes tropicais. Entrei só para uma saideira mas terminei ficando por duas horas, ouvindo as serenatas de brasileiros dispostos a assassinar toda espécie de canção, de baladas chorosas japonesas a pop brasileiro cafona, passando por "Bohemian Rhapsody". Se você estiver em São Paulo em busca de diversão, não deixe de ir a essa casa.

A Choperia Liberdade exemplifica o multiculturalismo de que os paulistanos se orgulham com toda justiça, mas não estamos falando de um cadinho moderno como Londres e Nova York. A imigração em massa ao Brasil praticamente estacou no começo dos anos 60, e por isso a maioria dos jovens brasileiros são descendentes de famílias que vivem no país há pelo menos três gerações. Desde a Segunda Guerra, a migração passou a ser interna, com milhões de pessoas deixando a empobrecida região Nordeste rumo ao sul, para trabalhar em fábricas ou como empregados domésticos.

(O mais famoso desses migrantes é Luiz Inácio Lula da Silva, que aos sete anos de idade fez uma viagem de 13 dias do Estado de Pernambuco a São Paulo, na caçamba de um caminhão. Meio século mais tarde, ele se tornaria o primeiro presidente brasileiro proveniente da classe operária, e um superastro da política.)

Os nordestinos trouxeram com eles sua forte cozinha rural, e um antigo operário chamado José Oliveira de Almeida, ou simplesmente seu Zé, abriu um pequeno restaurante chamado Mocotó, na Vila Medeiros, um bairro operário. Passados 40 anos, o restaurante e seu chef, Rodrigo, filho do seu Zé, são um dos grandes assuntos da cena gastronômica paulistana.

O trânsito em São Paulo é um inferno, e o Mocotó fica a 15 quilômetros do centro da cidade, mas no caminho do aeroporto, de modo que parei lá quando estava para deixar a cidade. Nos finais de semana, a classe alta e classe média paulistana faz o mesmo percurso congestionado e espera por até três horas por uma mesa no restaurante, simples mas sempre lotado.

"Mocotó" é pé de vaca cozido, e pensar nisso sempre me repugnou. Mas, ao menos no restaurante homônimo, é uma refeição de sabor tão delicioso quanto sua descrição é repelente --um caldo espesso e adocicado, repleto de sabores de carne. Outras especialidades são o baião de dois (feijão verde, arroz e queijo suave); carne de sol; e torresmo.

Eu venho do Black Country (uma região no centro da Inglaterra), e estou acostumado a pratos parecidos com o torresmo --mas nenhum deles tem esse sabor. O torresmo do Mocotó é leve e crocante, mas ainda assim carnudo. Mais tarde, descobri que Oliveira importou um forno da Alemanha para cozinhar os torresmos no ponto exato.

O Mocotó também é uma cachaçaria, com mais de 500 marcas de cachaça --bebida que costuma ser associada aos pobres e aos bêbados--, provenientes de todo o país.

O Mocotó fica em uma rua pobre e vende comida por preços acessíveis à maioria dos brasileiros, e portanto a um mundo de distância do DOM. Mas Oliveira leva a cozinha tão a sério quanto Atala. Ele é tão sério, de fato, que tem uma cozinha de pesquisa no segundo piso da casa e recorreu a um cozinheiro cordon bleu francês para ajudar a desenvolver o menu --mais ou menos como o jovem Raymond Blanc, em começo de carreira na Inglaterra, trabalhando em uma casa de tortas no East End.

Antes de eu sair para o aeroporto, o seu Zé, ainda atendendo no bar, me força a experimentar algumas cachaças para me ajudar a "relaxar" no voo. Saio contente, e não só por estar carregado de "pinga", o apelido da bebida. A nova cozinha brasileira ainda está na infância, mas estou convencido de que está no caminho certo.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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