Folha de S. Paulo


Um estado de consciência extraordinário; leia a 2ª parte da entrevista com Oliver Sacks

RESUMO No recém-lançado "A Mente Assombrada", o neurologista britânico Oliver Sacks põe seu talento de narrador para descrever alucinações suas e de pacientes. Na segunda parte da entrevista, Sacks fala de seu processo de escrita, das viagens que fez ao Brasil, da música de Bach e outros temas.

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Folha - No livro, o sr. conta como as pessoas relutam em narrar suas experiências de alucinação, com medo de que sejam consideradas psicóticas ou loucas. Com o livro, o sr. quis quebrar esse preconceito?

Oliver Sacks - Foi uma das razões, certamente. Alucinações psicóticas também estão intimamente conectadas com ilusões e com o mundo interno das pessoas, mas precisam ser consideradas de maneira diferente, e talvez devessem tivessem que estar à parte, num livro sobre esquizofrenia. Mas essa foi apenas uma das razões.

Considero as alucinações um estado de consciência extraordinário. São diferentes dos sonhos, da imaginação e podem afetar todos os sentidos. Não são tão incomuns, têm muitas causas diferentes e faz tempo que me interesso por elas. Pessoas com enxaqueca podem ter alucinações, e eu as experimentei quando era menino.

Nos últimos dez ou quinze anos foram realizados estudos sobre o cérebro enquanto pessoas tinham alucinações. Áreas particulares do cérebro foram observadas durante alucinações de coisas específicas, como rostos, por exemplo.

Havia muita informação nova para um livro. A ideia ganhou corpo em 1996, quando lancei "O Homem que Confundiu sua Mulher com um Chapéu", que tem um capítulo sobre alucinações musicais. Numa coluna de aconselhamento que sai em jornais daqui, chamada "Dear Abby", algumas pessoas vieram a público dizer que tinham lido o livro e que também estavam tendo essas alucinações.

Recebi então uma mensagem da querida Abby [pseudônimo da jornalista Pauline Philips] pedindo comentários. Basicamente, eu disse que a vasta maioria das alucinações são benignas, mas que é sempre preciso analisá-las de perto. Desde então, recebo centenas de cartas de pessoas com alucinações musicais, que acabaram formando o maior capítulo do meu livro "Alucinações Musicais".

E me perguntei: por que encerrar com a música o tema da alucinação? Então, o livro surgiu também do desejo de ventilar o tema.

Além dos pacientes, seus livros mencionam cada vez mais casos relatados por pessoas que se correspondem com o sr. Quantas cartas o sr. recebe por mês?

Uma quantidade enorme. Acabo de espiar um pacote que queria ter começado a ver na sexta-feira. Com a idade em que estou, só consigo ver um número limitado de pacientes, uns 12 por semana. Por isso é bom ter centenas de pessoas me escrevendo. Não consigo ler todas. Kate [sua assistente] filtra muitas, mas ainda vejo um monte. Adoro responder.

Às vezes as cartas dizem algo como: "Caro Dr. Sacks, li seu livro sobre alucinações. Gostei, mas possuo um tipo de alucinação que o sr. não mencionou, que é tal e tal coisa." Então respondo: "Pode descrever com mais detalhes?", ou "Sim, você está certo!". Se o remetente mora em Nova York, posso dizer "Venha me encontrar".

Às vezes eles podem vir, às vezes não. Quando dá, tento complementar o que leio nas cartas encontrando o remetente em pessoal. Em geral, acho que sou capaz de discernir uma carta genuína de uma impostura --apesar de não ver muito sentido em alguém escrever uma carta falsa. No caso de "Alucinações Musicais", a edição de bolso [lançada um ano depois do livro em capa dura] teve 40 páginas a mais, por causa de cartas que me enviaram.

Considero as cartas um meio importante de obter informação, e elas me fazem sentir, em parte, como se eu fosse um telefonista. As coisas convergem em mim, e preciso enviá-las para fora.

O sr. menciona no livro uma série de sonhos e alucinações que teve durante uma viagem ao Brasil. Pode contar mais sobre sua experiência no país?

Estive no Brasil duas vezes. Em 1996, passei mais tempo, o que me permitiu conhecer o Pantanal, ver capivaras e todos aqueles bichos, além de fazer uma viagem de canoa pela Amazônia. A história natural foi uma de minhas primeiras paixões, e ver a floresta tropical na Amazônia satisfez um desejo muito profundo que eu tinha.

Mas vi algumas coisas das quais não gostei muito. O tamanho absurdo de São Paulo me deixou aterrorizado. Fiquei com a impressão de não ter visto uma única árvore no caminho do aeroporto até a cidade; não sei se estou sendo injusto. Em alguns momentos, fiquei um pouco horrorizado com a presença da pobreza próxima de uma enorme riqueza, mas suponho que isso exista em qualquer lugar.

A segunda visita foi uma passagem rápida promovida pela editora, e eu gostaria de ir mais uma vez. Gostaria particularmente de participar de uma nova expedição de história natural, mas estou com problemas no joelho, na bacia, nas costas... Não sei se aguentaria qualquer tipo de viagem.

O sr. conta que suas alucinações amazônicas ocorreram por causa de um medicamento antimalária que o sr. estava tomando por precaução. Nessas imagens o sr. também enxergou coisas do Brasil?

Foram alucinações que tive quando estava com febre e diarreia. Não tinham nada a ver com o Brasil. Eram apenas as imagens de um estranho mundo específico situado no século 19, mas um no qual não tenho muito interesse [o livro menciona cenários de Jane Austen]. Preferia que fossem sonhos com florestas tropicais. E fiquei surpreso quando aqueles sonhos alucinatórios tão vívidos continuaram, mesmo após eu ter voltado para Nova York. Desde que o livro saiu, já recebi várias cartas de pessoas que estavam tomando o mesmo medicamento e tiveram experiências similares.

A carreira universitária exige intensa produção científica dos médicos, publicar um estudo após o outro. O que o sr. diz aos estudantes de medicina?

Muitas coisas caminham nessa direção, sim, mas não tenho nada contra estudos estatísticos. Como poderíamos mostrar a relação entre fumo e câncer sem esses estudos, que examinaram dezenas de milhares de pessoas? Mas a minha escolha foi por fazer estudos longitudinais, digamos, nos quais se acompanha alguém durante muitos anos. O estudo de um único indivíduo com grande detalhamento joga uma luz diferente sobre alguns problemas. É particularmente interessante ver como as pessoas reagem ou se adaptam a novas situações.

O sr. sempre se destacou por ser um intelectual com abordagem mais humana para a neurociência, focando a história de vida do paciente. Por causa disso, o "New York Times" se referiu ao sr. como um cientista "romântico". O sr. se sente confortável com esse rótulo?

Não totalmente. O termo "romântico" costuma ser usado em oposição a "reducionista", mas acho que precisamos ser as duas coisas ao mesmo tempo. Um colega meu [Christof Koch] acabou de escrever o livro "Consciência: Confissões de um Reducionista Romântico". É um grande neurocientista, sabe olhar para o todo.

Também sempre tive a sensação de que Luria [Alexander Luria, neuropsicólogo russo morto em 1977], que tenho como meu mentor, apesar de nunca tê-lo encontrado, tinha certa necessidade de unir o reducionista ao romântico. Ele levou isso ao extremo, especialmente nos seus dois últimos livros. Então, não quero ser visto como romântico à custa de perder objetividade ou vice-versa. E se "romântico" for usado em sentido pejorativo, vou recusá-lo, claro.

Em muitos aspectos, prefiro outra palavra: clássico. Trabalho um pouco no modo clássico dos históricos de casos do século 19, que costumavam ser muito detalhistas e levavam a uma jornada de descobertas que repete a do médico e a do paciente. Muitas vezes me inspirei em obras do século 19, embora me atenha a informações do século 20 ou 21.

O sr. já tem ideias para o próximo livro? No que está trabalhando?

Há várias ideias concorrendo umas com as outras; algumas são complementares. Tenho muitos textos já publicados, mas que ainda não foram reunidos em livro. Alguns são perfis: escrevi sobre Francis Crick, Stephen Jay Gould e outras pessoas que conheci. Além disso, tenho muitos diários de viagem. Um deles, "O Diário de Oaxaca", foi publicado. Mas também tenho um diário da Costa Rica. Penso fazer um livro reunindo ensaios sobre pessoas e lugares.

Também escrevi memórias, e algumas preenchem algumas lacunas. Já me sugeriram publicar uma sequência para "Tio Tungstênio". Não acho que daria conta, mas posso dar mais umas amostras daquilo. O capítulo sobre drogas de "A Mente Assombrada" foi uma dessas amostras, mas há muitas outras. Também tenho em mente um livro de ensaios sobre memória, consciência e imaginação.

Também tenho em mente um livro de pequenas histórias de casos com coisas que vi ao longo dos anos. Escrevi uma delas na semana passada, mas acabou não saindo tão curta. É uma história sobre soluços contando como, mais de 50 anos atrás, vi um homem desenvolver soluços após uma após uma cirurgia cerebral. Soluços podem parecer algo trivial, mas foram prejudicaram muito seu descanso, seu sono e sua alimentação. Ele parecia estar em risco de vida em razão disso, mas a cura surgiu de algo surpreendente. Eu tinha isso na cabeça desde 1961.

Um grande neurologista do século 19, chamado Hughlings Jackson, que publicava estudos enormes e pesados, também escrevia coisas curtas, que foram publicadas e reunidas após a sua morte. Ele os chamava de "fragmentos neurológicos". Gosto disso como um possível título.

Agora estou escrevendo várias coisas. Em minha vida sempre tive grande admiração pela biologia marinha e por vários invertebrados, particularmente águas-vivas, num extremo, e polvos, no outro. Gostaria de escrever algo sobre seus sistemas nervosos em relação ao comportamento, porque tem havido um bocado de trabalhos sobre isso agora.

Um tempo atrás, escrevi um ensaio sobre Darwin e plantas floridas e outro sobre sobre Darwin e minhocas Ðo próprio Darwin escreveu um livro sobre minhocas. Quando fiz isso, tinha um balde de minhocas na cozinha. Adoro minhocas e lesmas. Há um estudo fundamental em neurociência que surgiu das lesmas, feito por Eric Kandel, que estudava lesmas-do-mar do gênero Aplysia.

Então, tenho muitas ideias, e às vezes não sei com antecedência o que eu vou acabar fazendo. Hoje eu trabalho bastante em casa, porque sofri a minha queda [no escritório]. Tropecei numa pilha de livros e agora as coisas estão ainda mais entulhadas. Acho que minha casa é mais segura. Tenho diversas mesas de trabalho, cada uma para um livro diferente.

Entre os seus diários há algum sobre a viagem à Amazônia?

Escrevi algo que se assemelha a um diário. Guardo todos os diários que escrevi e penso em tirar alguns mais antigos da gaveta, sim. Escrevi diários na Noruega, na Islândia, na Amazônia e na Austrália, mas só uma pequena parte deles foi publicada. Adoro manter diários. É minha atividade favorita, além de escrever cartas.

Sempre ando com cadernos de anotação. Quando estava na floresta tropical da Costa Rica, precisava ter um caderno especial, impermeável, de papel plastificado, e tive de usar uma caneta à prova d'água também. Escrevo devagar, mas constantemente. Preciso fazer isso o tempo todo porque, na minha idade, nunca se sabe...

O sr. ainda tem tocado piano?

Sim. No momento estou tocando um prelúdio e fuga de Bach, e também uma peça de Ravel. Nunca tinha tocado Ravel, mas, para minha surpresa, acabei tomando gosto por Debussy [outro compositor impressionista], e agora Ravel. Mas meu primeiro e maior amor sempre foi Bach.

A música de Bach já apareceu em suas alucinações?

Ainda não. Mas já tive alucinações com um quinteto de Mozart do qual eu gostava muito. Posso imaginar Bach de maneira muito vívida, e quando penso em tocar uma peça, posso ver um teclado com minhas mãos por cima. Tenho um imaginário musical muito forte, apesar de ter um imaginário visual fraco, e a música é uma parte muito importante de minha vida. Quando viajo, uma das coisas de que sinto falta é o meu piano.

Agora, por causa da vista ruim, preciso ampliar cada vez mais as partituras, e isso causa um problema, porque elas ficam grandes demais. [Aponta para uma partitura impressa numa folha A3 pendurada na parede]. Em geral, tenho de ler duas pautas de uma vez só e virar páginas sem parar, o que acaba ficando um pouco difícil. Não sei qual é a solução para isso. Deve existir um tipo de computador com um tipo de pedal para mover a partitura, mas não sou versado em computadores e não sei como fazer isso.

O sr. usa computador para escrever?

Meu instrumento para escrever é este [ergue uma caneta]. Tenho uma máquina de escrever, mas acabei desistindo dela, porque não consigo mais enxergar bem os tipos. Eu escrevo devagar com a caneta e tenho uma caligrafia infantil. Até que gosto da lentidão da caneta. Se estou datilografando, tenho medo de me deixar levar pela agitação da máquina de escrever.

Com a caneta, posso grifar, usar flechas. Uso canetas de diferentes cores para corrigir; uma verde, uma vermelha e uma azul. Felizmente, elas duas [suas assistentes] são ótimas para decifrar a minha caligrafia. Melhores do que eu. Em geral, a Kate avalia o primeiro esboço, e a Hayley digita o texto. Também dependo das reações e opiniões delas. Para isso, não preciso tanto ouvir o que elas falam quanto preciso olhar para sua expressão.


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