Folha de S. Paulo


Clodovil esnobou o Motörhead

A memória é traiçoeira. Pode deixar lembranças intocadas no subconsciente, guardadas como um livro esquecido na estante. Às vezes, basta um empurrãozinho, uma fagulha, para ressuscitar histórias há muito adormecidas.

Foi o que aconteceu há algumas semanas, quando fui visitar um familiar internado em um hospital no Rio. Fazia mais de 24 anos que eu não ia àquele prédio. Assim que entrei, a história me voltou inteira: era março de 1989. Aquele hospital era um hotel, eu era fotógrafo e estava ali para fotografar uma banda de rock que tocaria no Rio no dia seguinte: o Motörhead.

Todo fã de rock pesado venera o Motörhead e seu líder, Lemmy Kilmister. Nascido na véspera do Natal de 1945, Lemmy é uma lenda do rock, um ícone da vida libertina e hedonista. Na mitologia do "sexo, drogas e rock'n'roll", ele só tem um adversário à altura: Keith Richards.

Arquivo Pessoal
Lemmy Kilmister (esq.) e Würzel, do Motörhead, com André Barcinski, após entrevista da banda no Rio, em 1989
Lemmy Kilmister (esq.) e Würzel, do Motörhead, com André Barcinski, após entrevista da banda no Rio, em 1989

Lemmy foi "roadie" de Jimi Hendrix e baixista do Hawkwind, uma comuna/gangue que vivia numa dieta de LSD e tocava uma animalesca mistura de punk e rock progressivo. Lemmy conseguiu a proeza de ser demitido do Hawkwind por mau comportamento. Em 1975, durante uma turnê, ele foi preso na fronteira entre EUA e Canadá por porte de drogas. Expulso do Hawkwind, Lemmy fundou o Motörhead, gíria usada para identificar viciados em anfetaminas.

Em sua hilariante autobiografia, "White Line Fever", Lemmy conta que bebe uma garrafa de Jack Daniel's por dia, já dormiu com 1.200 mulheres e resolveu doar o corpo à ciência, para que alguém estude o segredo de sua longevidade. "Em 1980, resolvi trocar todo meu sangue, para não precisar fazer 'detox', mas o médico disse que sangue puro iria me matar: 'Você não tem mais sangue puro em suas veias', me disse o doutor. 'E se você doar sangue, a pessoa morre na hora. Você é tóxico.'"

No lobby do hotel, Lemmy e sua banda, os guitarristas Würzel e Phil Campbell e o baterista Philthy "Animal" Taylor, conversavam com jornalistas e fãs. Falei com o agente, que reuniu os quatro para uma foto. Encontrei um lugar reservado, num bar que ficava no segundo andar do hotel.

Assim que chegamos, vi uma pessoa sentada numa poltrona, com um cãozinho nos braços. Não lembro se era um poodle ou um pequinês, mas era um daqueles bichos pequenos, fofos e barulhentos. Imediatamente reconheci a figura: era Clodovil.

Eu precisava conseguir uma foto de Clodovil com o Motörhead. A ideia de colocar aquela horda de vikings junto com o apresentador de "Clô para os Íntimos" era tentadora demais. E o cãozinho seria a cereja no bolo.

Sempre achei graça na justaposição de figuras "diferentes": anos depois, consegui fotografar o cantor do grupo de pós-punk Echo & the Bunnymen, Ian McCulloch, abraçando o pagodeiro Alexandre Pires. Também tentei, sem sucesso, juntar na mesma foto a atriz Catherine Deneuve e o diretor Zé do Caixão.

Voltando ao Motörhead: fiz rapidamente as fotos da banda e perguntei a Lemmy se eles se importariam em tirar uma foto com uma "celebridade da TV brasileira". Lemmy perguntou quem era. Expliquei que era um famoso estilista, uma figura muito popular e meio excêntrica. A única definição que me veio à cabeça na hora foi "o Liberace brasileiro". "Liberace? Mas ele é pianista?", perguntou Lemmy. "Ok, pode chamar, mas rápido."

Fui falar com Clodovil. Disse que a banda era muito famosa e que adoraria tirar uma foto com ele. Clodovil deu uma olhada para os quatro, virou-se para mim e disse: "Meu bem, não dá."

Não houve jeito de convencer Clodovil. E a imagem dele, o cachorrinho nos braços, ao lado de Lemmy e do Motörhead, só existe na minha imaginação.


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