Folha de S. Paulo


Cientistas recuam em polêmica sobre publicação do genoma de uma heroína das pesquisas

A incrível história de Henrietta Lacks, que morreu de câncer em 1951 e cujas células, ainda vivas, servem atualmente de base para muitas pesquisas médicas, cativa os EUA há cerca de dois anos --e não há sinais de que o debate, ou suas polêmicas, esteja para terminar.

Como revelou em 2011 o best-seller "A vida imortal de Henrietta Lacks", essa é a história de uma pobre fumicultora negra que nunca consentiu em ter seus tecidos retirados, mas cujas células cancerígenas se revelaram tão importantes que serviram de alicerce para trabalhos reconhecidos com dois Prêmios Nobel.

Mas a família de Lacks nunca soube disso --mesmo quando as células foram usadas em pesquisas mundo afora, ou quando esses parentes foram procurados com pedidos para doarem amostras de sangue, duas décadas depois. O livro descreveu a indignidade do drama da família enquanto corporações gigantescas lucravam enormemente com as células de Lacks-- conhecidas como HeLa no jargão médico.

Seus filhos, novamente sem o seu conhecimento, tiveram seus prontuários médicos estudados e até publicados. Era uma história que dizia respeito à complexa intersecção entre medicina, raça e lucro, e que pareceu ter um final feliz quando o livro, escrito por Rebecca Skloot, se tornou um best-seller, e a contribuição de Lacks para a ciência médica foi reconhecida.

Mas agora a história parece ter se repetido. Um grupo de cientistas do Laboratório Europeu de Biologia Molecular (LEBM), em Heidelberg, recentemente publicou um estudo no qual foi sequenciado todo o genoma de uma célula HeLa --basicamente colocando a sequência do DNA de Lacks na internet para todo mundo ver. Incrivelmente, eles deixaram de alertar qualquer parente de Lacks sobre suas intenções, ou de pedir sua autorização.

Skloot ficou indignada, argumentando que os cientistas pouco parecem ter aprendido. "A publicação do genoma HeLa sem consentimento não é um exemplo de alguns poucos pesquisadores cometendo um erro. O sistema inteiro permitiu isso. Todos os envolvidos seguiram práticas padrão. Eles apresentaram suas pesquisas em conferências e num periódico com revisão por pares. Ninguém levantou questões sobre o consentimento", escreveu ela em coluna no jornal "New York Times".

David Kroll, autor de livros científicos e conselheiro da Fundação Henrietta Lacks, ficou furioso pelo fato de Lacks e sua família terem aparentemente caído outra vez em um ponto cego da ética científica. "Fiquei bastante chocado. Não conseguia acreditar que estivesse acontecendo tudo de novo."

O impacto foi rápido. Embora os cientistas do LEBM tivessem insistido que o genoma não poderia ser usado para chegar a qualquer conclusão médica delicada a respeito de Lacks ou de seus familiares vivos-- como se eles tinham predisposição para determinadas doenças--, um pesquisador afirmou a Skloot que foi exatamente isso que ocorreu, baixando o genoma pelo computador e oferecendo provas das suas deduções confidencialmente a Skloot. No final, o LEMB reviu sua publicação, retirando os detalhes completos do genoma, e pediu desculpas.

O incidente agregou um inesperado último capítulo a uma história que já era notável. Lacks morreu rapidamente, aos 31 anos, após ser diagnosticada com um câncer de colo do útero. As células retiradas dela já foram usadas em experiências no mundo todo, e até no espaço. As células HeLa ajudaram a gerar centenas de milhões de dólares em lucros para companhias do mundo inteiro, e foram usadas para sucessivos avanços médicos. Foram usadas no desenvolvido da vacina contra a pólio, da fertilização in vitro e até da clonagem.

No entanto, antes do livro de Skloot sua história era pouco conhecida. Agora, não só Lacks é homenageada --uma escola foi batizada com o nome dela--, como também seu caso é visto como um grande exemplo dos abusos à ética médica, já que obter o consentimento de participantes de testes é atualmente algo visto como um dever moral primário. "A comunidade científica ainda pode ser arrogante e ter um desrespeito pelos sentimentos das pessoas", disse Kroll.

Isso parece particularmente verdade no caso do mais recente incidente envolvendo a publicação do genoma das células HeLa. À medida que a medicina e tecnologia genéticas se tornam mais comuns, mais questões importantes sobre privacidade passarão a ser discutidas. O genoma humano está se tornando mais fácil e barato de ser mapeado em sua integridade, e o tipo de violação que acaba de ocorrer com a linhagem celular HeLa provavelmente se tornará mais frequente. Isso pode expor muita gente a patrões inescrupulosos ou a planos de saúde que tentem analisar sequências de DNA em busca de informações confidenciais.

"Isso diz respeito de forma muito ampla à privacidade genética", disse Kroll. Afinal de contas, argumentou ele, se os pesquisadores ainda estavam suficientemente despreocupados a ponto de publicarem um genoma tão conhecido quanto o de uma célula HeLa, eles podem se preocupar bem menos com pessoas cujas identidades são --atualmente-- menos famosas. "Todo o caso de Henrietta Lacks tem sido uma bênção disfarçada. Com frequência erros podem levar a avanços e à correção de comportamentos", disse Kroll.

Tradução de RODRIGO LEITE.


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