Folha de S. Paulo


O debate definitivo em Davos: Marx, Keynes, Friedman e Schumacher

Imagine que você pudesse escolher os quatro integrantes de sua preferência para consertar os males da economia mundial em um debate de uma hora, o formato predileto do Fórum Econômico Mundial.

Klaus Schwab, o homem que organiza o fórum desde 1971, garantiu que muitos dos maiores nomes mundiais ocuparam seu palco de debates na semana passada nos Alpes suíços. Os espectadores em Davos puderam assistir ao duelo entre Nouriel "dr. Doom" Roubini e Adam Posen, até recentemente membro do comitê de política monetária do Banco da Inglaterra, sobre os méritos do relaxamento quantitativo.

Laurent Gillieron - 23.jan.13/Efe
A diretora do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, fala no Fórum Econômico Mundial em Davos
A diretora do Fundo Monetário Internacional, Christine Lagarde, fala no Fórum Econômico Mundial em Davos

Puderam ouvir o alerta de Mark Carney, que em breve substituirá Sir Mervyn King como presidente do Banco da Inglaterra, de que os problemas da economia mundial estão longe de resolvidos. George Soros discorreu sobre drogas; Sheryl Sandberg, do Facebook, falou apaixonadamente sobre estereótipos sexuais; o primeiro-ministro britânico David Cameron pediu ação do Grupo dos 8 (G8) contra a sonegação tributária e a corrupção.

Mas se pudéssemos formar um painel com Karl Marx, John Maynard Keynes, Milton Friedman e Fritz Schumacher, todos os quais já não estão entre nós, moderados por Christine Lagarde, do Fundo Monetário Internacional (FMI), uma das estrelas do evento da semana passada e para nossa sorte ainda bem viva?

Lagarde daria a partida à nossa discussão imaginária com algumas palavras de apresentação. Diria que os líderes empresariais partiram de Davos mais animados não devido aos milhões de palavras ouvidas no fórum, mas em função de quatro palavrinhas pronunciadas por Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu (BCE) em Londres, em julho passado: "Tudo que for preciso".

O BCE assumiu o compromisso de comprar títulos públicos dos países em crise da zona do euro em montante ilimitado. Isso eliminou um dos riscos, pouco plausível mas ainda assim grave, que pendem sobre a economia mundial --o de uma dissolução caótica da zona do euro. Mas, ela acrescentaria, qualquer recuperação registrada em 2013 deve ser frágil e tímida, e existe risco de recaída. "Começando por Marx, como o senhor vê as coisas?"

Marx: "A classe capitalista que se reuniu em Davos passou os últimos dias lastimando o desemprego e falta de demanda por seus bens. O que eles parecem incapazes de reconhecer é que isso é inevitável em uma economia globalizada. Há uma tendência a investimento e produção excessivos, e a uma queda no lucro, que os empregadores como sempre tentaram combater reduzindo os salários e criando um exército de reserva de trabalhadores. É por isso que existem mais de 200 milhões de desempregados no mundo e que a tendência é de maior desigualdade. Pode ser que 2013 venha a se provar melhor que 2012, mas o alívio será apenas temporário".

Lagarde: "Que análise pessimista, Karl. Os salários vêm crescendo rápido em certas áreas do planeta, como a China, mas eu concordo em que a desigualdade é ameaça. As pesquisas do FMI demonstram correlação entre desigualdade e instabilidade econômica".

Marx: "É verdade que as economias de mercado emergente estão crescendo rápido agora, mas com o tempo se verão afetadas pelas mesmas forças".

Lagarde: "Maynard, você acha que as coisas são tão ruins quanto Karl diz?"

Keynes: "Não, não acho, Christine. Creio que o problema seja sério mas solúvel. Quando enfrentamos uma crise dessa magnitude da última vez, respondemos por afrouxamento agressivo da política monetária --forçando a queda das taxas de juros de curto e de longo prazo-- e pelo uso de obras públicas para estimular a demanda agregada."

"Nos Estados Unidos, meu bom amigo Franklin Roosevelt apoiou leis que permitiam a sindicalização dos trabalhadores. Depois da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional criou o FMI a fim de atenuar os desequilíbrios de pagamentos, prevenir guerras cambiais mesquinhas e controlar os movimentos de capital. Todas essas lições foram esquecidas. O balanço entre política fiscal e monetária está incorreto; há guerras cambiais fervilhando; e a demanda agregada é fraca porque os trabalhadores não vêm recebendo seu justo quinhão dos ganhos de produtividade. A Economia ficou presa ao passado; é como se a física não tivesse avançado em nada desde Kepler".

Lagarde: "Pelo que diz, Maynard, depreendo que não aprove a maneira pela qual George Osborne vem conduzindo a economia britânica".

Keynes: "O sujeito perdeu o juízo. O problema do Reino Unido é de crescimento, não de deficit".

Lagarde: "Ouso dizer, Milton, que você discorda de tudo que Maynard afirmou. E que você prescreveria, provavelmente, uma cura natural".

Milton Friedman: "Alguns dos meus amigos na escola austríaca de Economia certamente defenderiam a inação, na esperança de que o sistema se purifique sem ajuda, mas não é o que penso. Ao contrário de Maynard, eu não apoiaria medidas que ampliem o poder de barganha dos sindicatos, e nunca aceitei obras públicas como resposta adequada a uma desaceleração".

"Mas eu certamente apoiaria a condução que Ben Bernanke vem dando à política monetária dos Estados Unidos, e apoiaria ações até mais drásticas, caso necessárias".

Lagarde: "Por exemplo?"

Friedman: "Bem, creio que a política monetária deveria ser gerida de maneira a atingir uma meta de produção nominal --ou seja, de crescimento nas dimensões da economia desconsiderada a inflação. Se o crescimento for alto demais, os bancos centrais deveriam promover um aperto, e se for baixo demais, a tendência desde que surgiu a crise, deveriam afrouxá-la. Em circunstâncias extremas, eu apoiaria políticas que desconsiderem a distinção entre política fiscal e política monetária. Foi isso que eu quis dizer quando falei de helicópteros lançando dinheiro na economia".

Lagarde: "Fritz, você ouviu com paciência as opiniões de Karl, Maynard e Milton. Como você avalia a situação do planeta?"

Fritz Schumacher: "A maneira pela qual esse debate está estruturado me incomoda demais. Existe uma obsessão com crescimento a todo custo a despeito dos custos ambientais. A mudança do clima pouco foi mencionada em Davos, e isso depois de um ano de eventos climáticos extremos. É assustador que tão pouca atenção tenha sido dedicada ao aquecimento global e à negligência quase criminosa dos governos que não aproveitam as taxas de juros baixíssimas para investir em tecnologia ecológica".

"Como foi o caso no passado, as recessões tiram da agenda as questões ecológicas. Nos momentos positivos as autoridades econômicas declaram sua adesão ao desenvolvimento sustentável, mas a promessas são esquecidas assim que o desemprego começa a subir. Aí voltamos aos negócios como sempre: expandimos aeroportos, reduzimos impostos para encorajar o consumo. Quando os cientistas alertam que a temperatura do planeta estará subindo para bem acima dos níveis pré-industriais, caso não mudemos nossas políticas, vivemos em uma economia de manicômio".

Lagarde: "Maynard, como você responde a isso?"

Keynes: "Concordo com ele. Se eu estivesse assessorando Roosevelt hoje, apelaria por um New Deal ecológico. Acho difícil imaginar um mundo sem crescimento, o que seria politicamente inaceitável nas economias em desenvolvimento, de qualquer forma. Mas Fritz está certo. Precisamos começar a procurar crescimento mais limpo e inteligente. Como você mesma disse na semana passada, Christine, se continuarmos a agir como estamos agindo, a próxima geração estará 'assada, tostada, frita e grelhada'".

Schumacher: "Eu não o teria dito melhor".

Tradução de PAULO MIGLIACCI.


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