Folha de S. Paulo


B.B. King, o último dos grandes "bluesmen"

O sol grande e vermelho se acomoda no horizonte, projetando a última luz doce sobre o fim de tarde úmido e o grupo de pessoas reunido num gramado ao lado de uma trilha de trem que corta os campos de algodão. Uma lua crescente se eleva no céu, e um coro de cigarras canta no crepúsculo iminente, fundindo-se agora com o som da banda. O baterista capta o ritmo de fundo e o apresentador anuncia: "Vamos aplaudir a volta para Indianola, sua cidade natal, do único e insubstituível Rei do Blues: BB KING!".

E surge BB King, recebido com aplausos por pessoas que o conhecem bem e o consideram um dos seus –o derradeiro dos grandes mestres do blues, que completou 87 anos no dia 16 de setembro. "Linda noite, não está?" ele diz, e apresenta seu sobrinho no sax.

Alguns de seus 15 filhos (de mães diferentes) e inúmeros netos estão na plateia, mas uma de suas filhas morreu recentemente de diabetes, como foi o caso da mãe de BB –fato que confere um tom subjacente doloroso à ocasião. "Acho que vocês podem olhar para mim e perceber que sou um homem velho", ele fala desde o palco. "Meu nome é BB King."

Tendo agora ao fundo um brilho violeta no céu ocidental –e olhando para o leste em direção ao povoado de Itta Bena, onde nasceu–, BB se senta e dá início ao show. Ele chega a "Key to the Highway", e lá está: aquela nota comprida e trêmula, pendurada ali nas nuvens de fumaça de churrasco, como apenas BB King é capaz de tocá-la. Ele revira os olhos, ergue as sobrancelhas e olha diretamente para a plateia. Há uma respiração entrecortada coletiva, aplausos em sequência e um elo mútuo de afeto.

Isto não é realmente é uma plateia, é um grupinho de amigos. A cidade compareceu para ouvir seu filho famoso. São em sua maioria pessoas negras –vindas em famílias, muitas delas trazendo um piquenique–, mais alguns brancos de rabo de cavalo, barbas à la ZZ Top ou outros sinais de inconformismo.

Há pessoas aqui como Alfred Knox –um de 11 irmãos, ele tem oito filhos e 21 netos–, que deixou o Mississippi para o Milwaukee quando tinha 19 anos, tendo nos ouvidos o som de Honeyboy Edwards, e agora voltou com seu sobrinho Gervis para ouvir BB, para ouvir e falar de blues, falar de política. Os aficionados e executivos de costume que soltam urros enquanto agitam garrafas de Budweiser em clubes para turistas, como o clube franqueado do próprio BB em Memphis, não estão presentes para este concerto anual de retorno às origens –estranhamente, mas ainda bem.

Tampouco estão presentes alguns dos bons cidadãos de Indianola. Latunya esteve na agência dos correios mais cedo com uma amiga e disse: "Estou feliz porque BB está de volta. Adoraria vê-lo tocar. Mas eu sempre saio na sexta-feira. Não saio na quarta, só na sexta-feira." Esta é também a cidade em que foi formado o Conselho dos Cidadãos Brancos, a ala política do Ku Klux Klan, e os herdeiros dos fundadores provavelmente estão em outro lugar hoje.

A sonoridade do mestre na guitarra é tão inimitavelmente perfeita quanto sempre. Depois de uma nota longa e intensa em "The Thrill is Gone", BB lança o olhar fixo de um palhaço para as pessoas das primeiras fileiras, como se estivesse perguntando "o que acharam disso!?". Mas é sua voz, trazida na brisa morna, que faz o coração dos ouvintes parar por um instante –aquela emoção sentida atrás e entre as palavras, algo que é a quintessência do blues.

Este é o 35º concerto Homecoming (de volta para casa), evento que foi promovido inicialmente em memória de Medgar Evers, o ativista dos direitos civis e amigo de BB assassinado por um membro do Conselho de Cidadãos Brancos. Há algo importante na presença de BB King, simplesmente porque, embora ele ainda esteja fazendo turnês, com quase 90 anos de idade, não haverá muitos outros concertos como este, nem ocasiões em que o grande homem vai tecer reflexões sobre sua vida extraordinária. Vida essa que começou com ele trabalhando nas plantações de algodão, vivendo sozinho num barraco, depois de sua mãe e sua avó terem morrido.

E tudo isso é mais razão ainda para essa vida fora do comum ser registrada no cinema. "The Life of Riley", de Jon Brewer, que será lançado no próximo mês, foi feito após muitas horas de conversa com BB King, pessoas que cresceram em torno dele e pessoas que seguiram seu exemplo –entre as quais estão muitos músicos britânicos. É o depoimento filmado definitivo do último grande bluesman.

Ainda mais importantes que as homenagens de grandes músicos –Eric Clapton, Keith Richards, Bono, etc.– são as recordações de pessoas como John Fair e Clemmie Trevellaine, sentados na varanda de sua casa, recordando o dia em que o garoto Riley B King, de 9 anos, voltou para casa de bicicleta para viver entre os campos de algodão, trabalhando atrás de um arado, segurando as rédeas de uma mula. "Eu não sabia nada disso", conta Brewer.

"Não fazia ideia de que essa tinha sido a vida de BB King. Que ele viveu sozinho aos 9 anos de idade, num barraco no meio dos campos, trabalhando durante quatro anos para pagar as dívidas de sua mãe e avó mortas. Eu nunca soube que ele estava tão sozinho, que conversava com os coelhos, seus únicos amigos. Quando ele me contou isso, eu chorei."

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BB King fez seu último show da turnê brasileira em São Paulo no Bourbon Street, no dia 7 de outubro
BB King fez seu último show da turnê brasileira em São Paulo no Bourbon Street, no dia 7 de outubro

Assim, também é um bom momento para o "Observer" conversar diretamente com o mestre em sua cidade natal, logo depois de seu ônibus estacionar na BB King Street, onde, antes de se apresentar, ele inaugurou uma nova calçada com lajes que vão relatar a história de sua vida. A história da qual ele fala agora, enquanto estamos sentados à sombra de uma nogueira-pecã. "Não costumo fazer isso, mas me falaram que você veio lá da Inglaterra", ele fala, sorrindo.

"Cheguei há pouco tempo", respondo, "só dormi duas horas. Quando eu tinha 16 anos e comprei isto" –é uma cópia de seu álbum "Indianola Mississippi Seeds– "eu nunca pensei que eu estaria aqui algum dia." BB dá risada e autografa o disco; seu afeto pela Inglaterra é de natureza musical, não sentimental.

Há uma saída da estrada principal que conduz à cidade que passa pelos campos de vegetação rasteira, chegando a Itta Bena. A estação do algodão está terminando; logo ao norte daqui, em volta de Clarksdale, capital do blues, nuvenzinhas de algodão se abriram "como pipoca", como observou John Steinbeck certa vez; aqui, os algodões brancos continuam fechados em suas vagens. Quando era menino, BB King conduzia sua mula por esses campos, enquanto seu tio Jack, no assento da frente, cantava o "holler", originário dos cantos e respostas dos escravos, que constitui a origem do blues.

"Eu me lembro do 'holler'", diz BB. "Segurando as rédeas de uma mula que puxa um arado pelos campos de algodão." O holler do campo, ele explica, era um lamento cantado por uma voz única em escala menor. Também funcionava como comunicação para avisar outros lavradores no campo que o patrão estava chegando ou que era preciso trazer água. "Sim, foi com o holler que tudo começou. Acho que isso está dentro de todos nós."

Riley B. King nasceu em 16 de setembro de 1925, bisneto de uma escrava. Ainda criança, mudou-se com sua mãe para Kilmichael para trabalhar como lavrador e ouvir os discos de Blind Lemon Jefferson de sua tia. Seu tio, o grande bluesman Bukka White, vinha de Memphis visitá-los, para tocar e cantar.

SANGUE

Primeiro a mãe de BB morreu, e depois morreu a avó que tinha passado a cuidar dele. "O blues sangrava o mesmo sangue que eu", ele escreveria mais tarde. Colhendo algodão por 75 centavos de dólar por dia, BB cobiçava a guitarra do pregador local e era até autorizado a "tocar alguns acordes que ele me ensinou". Então ele fez sua própria guitarra, contou: "A gente fazia com arame, o tipo de arame usado para fazer um fardo de algodão, e amarrava o arame a um cabo de vassoura. Apertava o arame, o som mudava, e eu estava tocando música." Mais tarde, seu patrão, um homem branco chamado Flake Cartledge, lhe avançou US$15 para comprar um instrumento de verdade.

Seguiu-se um período infeliz com a família de seu pai, em Lexington, mais ao sul. Ali BB testemunhou o linchamento e castração de um rapaz negro por uma turba de brancos; seu crime tinha sido assobiar para uma moça branca. Riley King fugiu de Lexington e da nova família de seu pai, voltando sozinho de bicicleta para Itta Bena.

Aos 9 anos de idade, Riley King estava de volta no Delta, onde trabalhou nos campos, colhendo algodão. "O algodão era uma força da natureza. Há uma poesia nisso: carpir e cultivar algodão", ele escreveria mais tarde. Sob a nogueira-pecã, ele acrescenta: "Se bem que ninguém do meu povo ficou rico fazendo isso. Acho que devo ter andado tanto quanto uma volta ao mundo, todas aquelas horas, aqueles dias e meses atrás da mula." Seu biógrafo, Charles Sawyer, perguntou a King uma vez: "Como você consegue tocar de terno com colete num calor de 35 graus?" Ao que BB respondeu: "Eu trabalhava o dia todo debaixo do sol quente no Mississippi". Sawyer disse que desmaiaria se tentasse tocar usando tantas camadas de tecido sobre o corpo. BB respondeu: "Você é branco, Charlie".

Nos sábados à noite, os lavradores iam para a cidade. "Eu ficava olhando pelas frestas das janelas para um lugar onde vou tocar mais tarde hoje, que chamam de Club Ebony", BB lembra, "para ouvir Count Basie tocar, Charlie Parker, também, e ver todas aquelas mulheres lindas dançando de vestido justo." O jovem Riley King cantava gospel nas esquinas desta cidade, não demorando a perceber que "o pessoal que frequentava a igreja e gostava de ouvir meu canto não me dava moedas, não tanto quanto aquele outro pessoal quando eu trocava de calçada, ia para o outro lado da cidade e, ao invés de louvar o Senhor, louvava uma mulher".

Foi mais um dos fundamentos dos blues que King aprendeu desde cedo: que não são apenas as palavras de uma canção que importam, é o clima dela, que é transmitido pela laringe, como um instrumento. Foi isso o que definiu e define a voz extraordinária de BB. E há o instrumento propriamente dito, a guitarra.

Várias aventuras mais tarde, BB realizou seu sonho de chegar a Memphis para tocar. Ele recorda um momento crucial na história do estilo de guitarra que virou o dele, e apenas dele –o vibrato que é imediatamente reconhecível como o de BB King, após apenas uma nota. Ele estava hospedado com Bukka White, e "Bukka tocava 'slide' (flauta de êmbolo) usando um gargalo de garrafa ou simplesmente um pedaço de tubo. Eu queria fazer isso; tentei, e ele me mostrou como, mas tenho dedos burros, sabe, e não consegui."

Mesmo assim, "o som que Bukka fazia entrava em meu corpo todo, e eu criei minha própria técnica para produzir o tremolo sem o 'slide'". BB deu a essa técnica o nome de "borboleta. Eu giro meu pulso para frente e para trás, desde o cotovelo, e isso estica a corda, fazendo a altura da nota subir e descer ritmicamente. Com meus outros dedos esticados, minha mão inteira faz um gesto de flutuar, um pouco como uma borboleta batendo as asas."

Assim nasceu o som de BB King –um som que expressa um estado de alma, um sentimento, melancólico ou não. No filme de Brewer há uma montagem em que a maioria dos grandes guitarristas de sua geração reconhece o som e a capacidade de reconhecê-lo. O próprio BB King o diz de outra maneira: "Tentei vincular minha voz cantada a minha guitarra e minha guitarra à voz. Como se as duas estivessem conversando." Jon Brewer confirma um detalhe que explica de outro modo o diálogo entre voz e guitarra: "O segredo de BB é que ele não consegue cantar e tocar ao mesmo tempo".

BB King deu a sua guitarra o nome de Lucille depois de uma briga entre outras pessoas num bar, em que foi derrubado um recipiente de querosene que era o sistema de aquecimento da casa. O lugar pegou fogo, e o público saiu correndo, mas BB percebeu que tinha deixado sua guitarra lá dentro e correu para buscá-la. Arrependido de ter sido descuidado, descobriu que a briga tinha sido devida a uma mulher chamada Lucille. "Dei à minha guitarra o nome de Lucille", ele conta em "The Life of Riley", "para me lembrar de não fazer alguma coisa assim de novo, e não fiz."

Diego Padgurschi - 19.mar.10/Folhapress
BB King durante show na Via Funchal, em São Paulo, em 2010
BB King durante show na Via Funchal, em São Paulo, em 2010

Em busca de trabalho nas grandes cidades, os blues foram para o norte do país, acompanhando a grande migração provocada pela mecanização dos campos de algodão. Os músicos acompanharam a maior parte do êxodo negro, em direção à megalópole de Chicago, em franco crescimento. Cada músico daquela que seria a era de ouro dos blues modificou o som do Delta para formar seu estilo próprio –Elmore James, Muddy Waters, Howlin' Wolf– dentro do som elétrico de Chicago. Mas BB King escolheu um cenário diferente, em Beale Street, em Memphis, mais perto de casa, do Mississippi. Ele acabou forjando um timbre mais redondo, menos ferino que Muddy ou Wolf, com uma banda maior, que incluía seções de metais e ritmo.

Blues Boy King –o apelido que, encurtado, virou BB King– virou astro do rádio na estação de blues WDIA, em Memphis. Ele montou sua banda, viajou em turnê num ônibus, fez amizades que duraram a vida toda, deixou sua primeira mulher e deu vazão a seu amor pelas mulheres, no plural –e lançou seu primeiro sucesso, "Three O'Clock Blues".

ESTRADA

Em "The Life of Riley", Calvin Owens –trompetista da banda original de BB King– recorda aqueles tempos no chamado Circuito Chitlin', racialmente segregado e que recebeu esse nome devido às entranhas de porco, que dizia-se que os negros gostavam de comer, mas não os brancos. "Mas eu nunca chamei isso de Chitlin' Circuit", diz BB King.

"A estrada é sua casa", diz Owens, e continuaria a ser a casa de BB pelo resto de sua vida. Às vezes ele fazia 350 apresentações por ano –"gosto do meu trabalho", ele explica quando conversamos sob a nogueira-pecã. BB se casou pela segunda vez, agora com Sue Carol Hill, filha do proprietário do Club Ebony –fundado em 1907–, o lugar onde ele olhava pelas frestas da janela, quando menino, e onde mais tarde tocou. O casamento deles, enquanto durou, foi vivido na estrada. Eles se hospedavam em hotéis segregados para negros e comiam em restaurantes segregados para negros.

"Já suportei mais humilhações do que gosto de me lembrar", King escreveu em sua autobiografia, "Blues All Around Me". "Viajar em turnê pelos EUA com a segregação. O que doía mais era ser eternamente barrado e assediado por policiais brancos. Você não se dá conta do mal que isso faz. Você prende tudo em seu interior. Sente-se vazio, como se alguém tivesse enfiado a mão dentro de você e arrancado suas entranhas para fora. Sente-se sujo e humilhado, menos que uma pessoa." Houve uma noite no Gaston Hotel, em Birmingham, Alabama, onde BB King estava hospedado na mesma época que Martin Luther King, quando "jogaram uma bomba no lugar. A explosão sacudiu meu quarto." Agora BB King está de volta, para ser homenageado na cidade onde foi fundado o Conselho de Cidadãos Brancos.

Na última vez em que estive nesta área, em torno de Clarksdale, foi para fazer uma reportagem sobre a pobreza –e, no Mississippi, isso significa pobreza negra. Era o ano da eleição em que Al Gore e George W. Bush se enfrentaram, e eu fiquei sentada com a idosa Ruby Walker na varanda de sua casa, com seus 22 gatos brincando à nossa volta. Os dias seguintes seriam especialmente difíceis para a família Walker, pois teriam sido marcados pelo 19º aniversário da neta de Ruby, Sandra Handy. Mas o aniversário que eles lembravam era outro: "Ela estava atravessando a trilha do trem neste época do ano passado, vindo para casa, quando os disparos começaram, e uma bala a pegou na cabeça." Há uma intimidade macabra no crime. Ruby apontou para a casa atrás da dela, onde pessoas penduravam suas roupas para secar no calor úmido: "Foi o rapaz dessa família que atirou. Ele só pegou dez anos de prisão. É difícil olhar para eles todos os dias." O assassino, ela acrescenta, era "membro de uma gangue –brigando por território".

Como os bisavós de BB King, também os de Ruby eram escravos que trabalharam nas plantações de algodão. "E eu também era, de certo modo", ela refletiu. "Trabalhávamos do nascer do sol ao por do sol, e o dinheiro era pouco." Sua filha Mary virou a quinta geração da família a colher algodão, até encontrar trabalho numa escola local. Mas, acrescentou Ruby, com os sulcos em sua testa se aprofundando: "Às vezes me pergunto se acabaram mesmo com a escravidão. Não sei mais o que está acontecendo por aqui. Só sei que nos anos 1940 as coisas eram melhores do que são agora."

Nessa mesma visita, conheci um parente da família Fair, que dividia o pedaço de terra com o jovem BB King e que, no filme de Brewer, se recorda de BB, quando menino, voltando de Lexington para casa, de bicicleta. Shirley Fair era dona da floricultura Ooh So Pretty Flowers, em Clarksdale, onde foi organizado um encontro com o presidente Bill Clinton quando ele passou pela cidade em sua Turnê da Pobreza, em 1999.

Mas, disse Fair, "de lá para cá nada melhorou. Não há nada aqui para a gente se segurar. A ferrovia fechou, as fábricas fecharam. As pessoas de bem vão embora, as gangues tomam conta das ruas, e com isso os comerciantes têm mais dificuldade em sobreviver. O presidente me escreveu uma carta, dizendo que eu podia me candidatar a uma doação e dar emprego a dez pessoas. Mas havia tantas normas e regulamentos que não entendi nada. Sempre alguma coisa para deixar tudo mais difícil. Então eu desisti."

As noites por aqui são diferentes quando BB King não está na cidade. No Club Sugar, em Jonestown – um barraco decrépito ao lado da trilha de trem–, rapazes como Q, com sua bandana azul, estão chegando para afogar as mágoas e as ideias numa saraivada de rap, enquanto seu amigo Icy Man, apesar de estar no meio de uma conversa, traga fundo num cachimbo de crack; seus olhos ficam vidrados, seu rosto congela numa expressão de ausência. É como achar o velho Bronx dos anos 1970 no meio de uma plantação de algodão do século 21, e em pouco tempo as pessoas vão para um boteco mais próximo do centro do vilarejo, o Hot Spot. Perguntamos se podemos fazer fotos das pessoas dançando, mas nos respondem educadamente que isso seria "má ideia, porque muitos dos caras que estão aqui são procurados. Eles são sérios." Nosso anfitrião, um homem chamado Clee que não gosta de rap e sonha em montar uma banda de blues na cidade, acrescenta: "Eles não são locais, são de County".

BB King conhece tudo isso. E ele não está tão satisfeito quanto se poderia imaginar com o "progresso" conseguido desde os maus velhos tempos. É verdade que ele fez uma jam session na Casa Branca diante de um presidente negro e que há um Dia BB King no calendário do Mississippi –mas também é verdade que a bandeira do Estado é a dos Confederados. "Já percorremos um caminho muito longo, mas não avançamos o suficiente", diz BB King. "Ainda há muito, muito que andar."

Pergunto se ele tem consciência de seu próprio papel nesse caminho longo percorrido desde que ele viu um homem ser linchado e dividiu com Martin Luther King um hotel atacado com uma bomba incendiária. "Eu gostaria de pensar que deixei uma pegada na areia", ele responde, e põe o braço em volta dos ombros de um menino sentado ao nosso lado, à sua direita. "Este garotinho tem a mesma idade que eu tinha quando segurava as rédeas de uma mula. Ele nunca vai conhecer aqueles tempos, mas o que será que este garoto vai fazer quando ficar adulto? Eu me pergunto."

Contudo: "Os racistas não puderam legislar o gosto musical", escreve BB. A influência de BB King e do blues sobre grandes músicos brancos da geração que o seguiu é uma parte de uma das histórias mais fascinantes da música e cultura do século 20: como hipsters brancos, muitos deles britânicos, conheceram os blues do Delta e de Chicago e levaram as pessoas que os cantavam para um público branco enorme –e, finalmente, para o público global–, para o assombro dos próprios bluesmen mais idosos.

Há um momento maravilhoso em "The Life of Riley", mostrando um show que BB King estava fazendo em Chicago ao qual chegaram quatro pessoas brancas. "Uma delas era extra-branca", BB recorda, aludindo ao albino Johnny Winter, guitarrista mestre do blues, com cabelos retos compridos e braços finíssimos, tatuados. BB receou que eles fossem agentes da Receita, uma praga eterna em sua vida. Winter perguntou se podia assistir à canção, e o mestre reagiu com ambivalência clara. Mas, comentou: "Ele era bom. Era bom, vou te contar."

Quando BB King gravou aquele que talvez tenha sido seu maior álbum, "Live at the Regal", em 1964, a América mainstream e boa parte da América negra já tinham esquecido o blues, em favor do rock'n'roll e do soul ainda embrionário. Mas os hipsters continuaram fiéis aos blues. John Mayall nutriu um elenco de talentos que incluiu Eric Clapton, Peter Green e Mick Taylor, que mais tarde faria parte do Cream, Fleetwood Mac e os Rolling Stones, enquanto nomes menos conhecidos impeliram a explosão britânica do blues: Chicken Shack, Savoy Brown, Wishbone Ash, Keef Hartley e outros.

Jon Brewer recorda o momento: "Essas bandas novas tocavam em salões de bingo e clubes, abrindo shows de Cliff Richard, Engelbert Humperdink ou sei lá mais quem e perguntando-se que rumo deveriam seguir. E encontraram material realmente bom tocado por músicos negros, coisas muito superiores ao que tínhamos aqui. Então pessoas como John Mayall e Peter Green pensaram 'isto é bom de verdade'."

(Meu próprio interesse profundo e irrevogável nasceu na noite em que Son House, Bukka White, Sonny Terry e Brownie McGhee chegaram para tocar no Hammersmith Odeon, em 1967. Fiquei fascinado, fisgado por toda minha vida. Quando os bluesmen brancos foram à América, Keith Richards recorda no filme de Brewer, "eles queriam saber o que estávamos fazendo e por que estávamos fazendo".)

"Posso identificar BB depois de ouvir apenas uma nota", diz Eric Clapton no filme de Brewer. "A maioria de nós pode." De acordo com Clapton, BB King possui "um senso melódico que é singular, apenas seu".

Bill Wyman se recorda do tremolo de BB King quando os dois gravaram juntos em 1971: "Ele me mostrou como fazer, mas não consegui".

Há uma sequência assombrosa no filme em que BB descreve sua chegada ao teatro Fillmore West, de Bill Graham, em San Francisco, com hippies brancos fazendo fila na rua para entrar. Num primeiro momento, BB pensa que está no lugar errado, mas confessa que ficou tão emocionado pelas várias ovações em pé que "chorei enquanto subia a escada para voltar". Em nossa entrevista debaixo da árvore, King diz que aquele foi "meu momento de avanço grande. Foi uma situação incomum. Tínhamos todas essas pessoas tocando o blues: Mike Bloomfield e Elvin Bishop eram bons, Clapton era bom, Johnny Winter era bom, Peter Green era bom."

Ele se debruça para frente, como se quisesse confidenciar um segredo: "Eles tinham alguma coisa. Nos apresentaram para todo um novo mundo. E aprendemos muito com pessoas como Clapton e Peter Green. Não vou contar a você o que foi", ele está cochichando, "mas aprendemos alguma coisa. Eles fizeram algo pelo blues."

BB King escreveu certa vez, quando estava falando sobre sua técnica, que "Lucille estava cantando o blues melhor que eu". Mas agora ele declara algo surpreendentemente diferente: "Você já me ouviu descrever a mim mesmo como um bluesman e um cantor de blues", ele diz. "Eu digo que sou cantor de blues, mas você nunca me ouviu dizer que eu seja guitarrista de blues. Bem, isso é porque já houve tantos que conseguiram fazer melhor que eu, tocar guitarra melhor que eu. Acho que muitos deles me transmitiram coisas, me ensinaram coisas. Mas não são eu, só isso. Não são BB King." É uma observação que destaca a primazia da voz de BB King, aquele voz rouca e tão expressiva, aquele uivo de desejo ou de sofrimento.

Estou falando sozinho com BB King há 25 minutos agora, cercado por pessoas que o conhecem há décadas. Velhos amigos e familiares, além de fãs jovens que vieram vê-lo pela primeira vez, e a sensação é que o dique está prestes a romper –soltando não uma enxurrada de água represada do Mississippi, mas esta multidão de boa gente.

BB King encerra nossa entrevista com uma observação que é reveladora da verdadeira grandeza. No filme, ele tinha dito: "Quando ouço o que quero ouvir, tenho que parar". Agora ele explica melhor o que quis dizer: "Acho que já fiz o melhor que eu podia. Mas quero continuar a tocar melhor, a ir mais longe. Há tantos sons que ainda quero fazer, tantas coisas que ainda não fiz. Quando eu era mais moço, pensei que talvez já tivesse atingido aquele pico. Mas estou com 86 anos agora, e, se eu conseguir viver até o próximo mês, terei 87. E agora sei que a música nunca pode ser perfeita, que nunca poderá ser exatamente o que deveria, então você precisa ir mais longe, precisa melhorar."

Sobre o assunto das mulheres, o livro de BB King é tão franco que quase desarma o interlocutor. E ele me diz agora: "Nunca conheci uma mulher de quem eu não gostasse. Eu amo todas, cada uma à sua maneira." E, dito e feito, naquele momento uma mulher pede a atenção dele.

"Sabe", ele reflete, falando comigo, "se eu encontrasse uma mulher simpática que me desse uma chance, eu poderia até voltar para Indianola."

Ele se volta à senhora de vestido esplendidamente colorido. "Você é casada?"

"Não, senhor", ela responde.

"Você não deveria me dizer esse tipo de coisa", BB confidencia.

ERRADO

Quando BB King deixa o palco no parque ao lado de seu museu em Indianola, a noite está apenas começando. Não apenas a noite desta parte da cidade, no lado "errado" daqueles trilhos de trem, onde bares de blues e favelas rurais se acotovelam e vibram, cheios de vida, mas também a do mestre do blues de 86 anos.

Duas horas depois de se despedir de nós, BB deve subir ao palco outra vez num dos espaços mais historicamente carregados da América: aquele mesmo Club Ebony, fundado em 1907, onde, ainda garoto, Riley B King espiava pelas frestas das janelas e arregalava os olhos ao ver todo o rebolado, segundo diz.

Por volta das 23h BB King aparece no palco; boa parte da plateia já tomou alguns goles além da conta. As pessoas estão faladoras mas amenas, preparadas para algo que é –para mim, pelo menos– a experiência de uma vida. O mestre do blues que já se apresentou em estádios e salas de concertos em todo o mundo se acomoda na cadeira como se estivesse em sua própria sala de estar, algo que, sob muitos aspectos, este lugar realmente é. Há um problema com a eletricidade: "Acho que devo ter atrasado o pagamento da conta", ele diz, rindo.

Então ele pega Lucille nas mãos e toca aquelas notas –notas longas, impossivelmente esticadas, por momentos caindo em alguma zona na qual Jimi Hendrix poderia ter navegado. Estranhamente, talvez, ele faz menos contato visual com as mesas do bar, pelas quais fluem licores e bebidas diversas, do que fez com seu público no show ao ar livre. Ele cumprimenta o público e brinca com ele, é claro, mas agora está imerso num mundo próprio, não tanto um showman quanto um músico que está ouvindo sua própria alquimia com atenção.

Lá fora, na sauna dessa noite, rapazes pobres em trajes de membros de gangues se reúnem para ver as pessoas que têm bilhetes entrando e saindo. Um zunzunzum cerca o grande evento: drogas à venda, policiais empurrando alguém dentro de uma viatura, guardas patrulhando os carros estacionados das pessoas do público, e rapazes observando os guardas.

Agora BB toca todos seus maiores números. O ar se enche de vapores de uísque e de um nível inesperado de conversa, e são trocados insultos com uma família de caipiras brancos, um dos quais está totalmente bêbado, trocando os pés, bloqueando a visão de outras pessoas e tentando roubar o chapéu de um idoso.

Em "Every Day I Have The Blues", a voz de BB volta a ser como aquele instrumento, ao mesmo tempo gutural e aveludada, e ele parece cantar com sua guitarra, enquanto Lucille responde ao cantor. Ele canta "See That My Grave Is Kept Clean", aquele grande hino do blues sobre a iminência da morte, uma música que faz o sangue do ouvinte gelar. Atravessada pelo som desafiador e doloroso da guitarra de King, é o mais perto que ele chega de cantar um holler dos campos esta noite, mesmo que seja com Lucille. "Nada mau para um homem de 86 anos", ele comenta, encerrando uma noite que já virou madrugada na terra do algodão.

Tradução de CLARA ALLAIN.


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