Folha de S. Paulo


Crítica

Espetáculo discute desumanização e impasses da civilização

Cacá Bernardes/Divulgação
Peça 'Canto para Rinocerontes e Homens', do grupo Teatro do Osso, com direção de Rogério Tarifa
Peça 'Canto para Rinocerontes e Homens', do grupo Teatro do Osso, com direção de Rogério Tarifa

CANTO PARA RINOCERONTES E HOMENS (muito bom)
QUANDO sáb. e seg., às 20h, dom., às 19h; até 18/12
ONDE Galpão do Folias, r. Ana Cintra, 213, tel. (11) 3361-2223
QUANTO R$ 10 a R$ 30
CLASSIFICAÇÃO 16 anos

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O espetáculo "Canto para Rinocerontes e Homens" faz com que os fundamentos da peça "O Rinoceronte", de Eugène Ionesco (1909-94), alcancem reverberações críticas mais impactantes do que as sugeridas na obra original.

O grupo dirigido por Rogério Tarifa desconfia da metáfora abstrata sobre o totalitarismo que organiza a peça de 1959 e a projeta sobre o mundo embrutecedor do capitalismo.

Nesta adaptação, o movimento central da peça, a transformação de seres humanos em rinocerontes, é associado a uma espécie de estrago social do homem no cotidiano regulado pelo trabalho.

"Que humanidade é essa que você fala e eu não conheço? (...) Eu só sei trabalhar", afirma o personagem Jean enquanto sua pele endurece e lhe nascem chifres.

Embora tornar-se rinoceronte signifique a adesão plena a essa lógica desumanizada, na mutação aparece também a revolta contra tal sistema.

"Eu preciso descobrir que eu tenho sangue", grita Jean enquanto renuncia a ser humano. Um paradoxo bastante revelador sobre o fascínio de saídas totalitárias para os impasses da civilização.

A montagem musical é uma espécie de ópera popular que ressalta a enunciação da palavra. E tudo acontece em uma arena. Nessa estrutura circular, o público passa a fazer parte dos dilemas apresentados e do exame crítico e coletivo sobre o tema. É uma atitude avançada de grande implicação política.

Mas o espetáculo não se contenta com a adaptação da peça de Ionesco. É constituído também por uma série de comentários e reverberações líricas sobre os temas. O resultado para o público é uma estrutura dissonante.

A montagem apresenta uma abordagem concreta, organizada a partir de uma perspectiva crítica sobre o mundo do trabalho.

É uma encenação pensada de forma coral e materialista que atravessa a peça e apresenta força reflexiva sobre a atualidade. Entretanto, as aberturas líricas vão, pouco a pouco, se sobrepondo à objetividade crítica até tornarem-se centrais no quarto ato.

A atuação coral e coletiva, por exemplo, é suplantada por uma sequência de monólogos de cada um dos atores no momento em que se transformam em rinocerontes.

A forma épica de representar os temas da peça é encerrada e substituída pela elaboração individual e subjetiva sobre o discurso.

Essa atitude que ganha terreno ecoa aquela ênfase no individualismo defendida por Ionesco em "O Rinoceronte" como a única possibilidade de resistir ao fascínio da massificação.

Mas não seria esse individualismo também o fundamento ideológico da sociedade desumanizadora em que nos encerramos? Embora o grupo cante: "eu só não quero virar/ rinoceronte", a peça flerta com uma forma de capitulação lírica.

E, surpreendentemente, o bruto paquiderme passa a ser visto com simpatia poética na imagem final do último rinoceronte branco.


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