Folha de S. Paulo


Jessé Andarilho, que escreve em um velho celular, lança seu 2º romance

Custodio Coimbra/Agência O Globo
Rio de Janeiro (RJ) 08/11/2017. Filhos da Flup. Perfil de Jessé Andarilho, escritor. Foto Custodio Coimbra DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM
O escritor Jessé Andarilho, que lançou seu segundo romance

Ele não para de batucar num velho celular Blackberry, já fora de linha, mas cujo teclado físico é relativamente largo, o que torna mais confortável enviar SMS ou e-mails e digitar por longos períodos de tempo.

Foi assim que escreveu seu primeiro romance –"Fiel", publicado em 2014, que lhe deu notoriedade instantânea– e também o segundo, que acaba de sair pelo selo Alfaguara: "Efetivo Variável".

Ambos nasceram com o autor em trânsito (quase em transe) em trens, ônibus, metrô. Uma deambulação que explica o nome que adotou: Jessé Andarilho. Na pia batismal, é Jessé da Silva Dantas.

"As ideias vão surgindo sem parar. Não me importo com a confusão ao meu redor. Imagino que, se consigo escrever no barulho, as pessoas vão conseguir me ler no silêncio", acredita ele.

No aparelho de valor sentimental, guarda esboços de outros cinco livros.

"Quem vai roubar um desses?", pergunta. Seu smartphone de última geração quase não dá sinal de vida, guardado no bolso: "O velhinho eu não uso mais como telefone. Nem tem mais chip. Mas fiz um backup dele".

A relação com o celular está na essência da literatura do escritor de 32 anos, que vive em Antares, conjunto residencial criado na zona oeste do Rio na década de 1970 para receber moradores removidos de favelas da zona sul.

"Escrevo como se tivesse contando uma história para alguém no WhatsApp. Então não fico enrolando muito, tem de ser papo reto. Daí a simplicidade do texto."

Fiel' narra a história de um menino bom de bola que se vê envolvido pela violência entre polícia e facções criminosas. Foi baseado no que Jessé viu e ouviu de amigos e conhecidos em Antares e deve virar filme no ano que vem.

Até então, o novato quase não havia lido na vida e tinha repetido cinco vezes um mesmo ano do fundamental.

Mas certo tipo de leitura o despertou: "No Coração do Comando", de Julio Ludemir, o primeiro romance que leu de cabo a rabo, pois "parecia um filme"; "Capão Pecado", de Férrez; "Zona de Guerra", de Marcos Lopes; "Abusado", de Caco Barcellos.

Jessé percebeu que tinha para contar uma história de intensidade semelhante e resolveu passá-la para o papel –quer dizer, a tela do celular.

Antes, frequentou os cursos de formação da Flup (Festa Literária das Periferias). Ao terminar o livro, mostrou o manuscrito para Celso Athayde, da Cufa (Central Única das Favelas), que o indicou para a editora Objetiva.

Hoje esbarra em feiras e festivais com autores que lhe fizeram a cabeça e que se tornaram amigos. Troca ideia com gente que não imaginava conhecer: Mano Brown, MV Bill, Lázaro Ramos. "Em dia de show dos Racionais, fico no palco", orgulha-se.

Incentivado por um amigo, arriscou-se em novas leituras: "Gostei de 'O Estrangeiro', de Albert Camus, e 'A Revolução dos Bichos', de George Orwell. Mas, se achar ruim, eu paro. Não tenho de ler só porque é clássico. Vejo a literatura como uma conversa longa. E não dá para aturar dez horas de papo chato".

RÓTULO

Jessé Andarilho está à frente do movimento Marginow, uma iniciativa que pretende mostrar as favelas por outros ângulos, utilizando-se de canais no Youtube para leituras de poesia e clips de rap.

"Na periferia, teatro é sempre amador, funk é proibidão, produtor cultural é agitador, literatura é marginal. Resolvi adotar o rótulo", diz ele, que já se apresentou em Nova York, Paris e Bolonha.

Em 2001, antes de tudo isso acontecer, Jessé viveu uma experiência comum na vida de milhares de jovens brasileiros que anualmente fazem o serviço militar obrigatório:

"Foi um choque. Morador de favela, com mãe trabalhando fora, eu vivia com liberdade e, de repente, sou confrontado com um monte de regras. É sim senhor, não senhor, farda passada, coturno engraxado, corte de cabelo de dez em dez dias. Fora o esculacho. Se você ousar dizer alguma coisa, é obrigado a pagar cem flexões".

"Sabia que seria interessante botar um personagem ali. Até para mostrar que o Exército não é solução".

Em "Efetivo Variável", o recruta Vinicius –cujo DNA, segundo Jessé, é "70% invenção"– enfrenta hostilidade e preconceito e, de maneira improvável, envolve-se com a filha de um sargento: "Os oficiais são, na maioria, brancos. E racistas, mesmo que não tenham essa consciência. A gente ouve que 'preto só faz merda' como se fosse a frase mais normal do mundo".

A vida nos quartéis é tema quase inexplorado na literatura brasileira. Há quase 55 anos, João Antônio –não por acaso um autor de personagens marginais– publicou o clássico "Malagueta, Perus e Bacanaço", apresentando três contos da "caserna".

O escritor optou pela perspectiva do soldado raso: "Busco quem está à margem Sempre que assisto a filmes, em que há um presidente e se prepara um atentado contra ele, tem um garçom que passa na cena, um figurante que quase ninguém nota. Mas eu fico prestando atenção nele."

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Um novo romance já está sendo batucado, para 2018, antes das eleições. O tema é a corrupção: "Estou com essa maldade no coração".

"É a trajetória de um garoto que acaba presidente. Tudo começou porque ele se aproveitou de um descuido da professora, pegou o carimbo de presença e, em vez de frequentar as aulas, ia direto para o fliperama. Lá ele aprendeu a roubar na máquina e não parou mais.


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