Folha de S. Paulo


Rascunho mostra processo de construção de 'Terra em Transe'

Repórteres fotografam o corpo de um homem negro no lixo. Meninos nordestinos morrem de fome. Camponeses são assassinados em nome da reforma agrária.

"Não é possível esperar. Não podemos mais contemplar o extermínio de gerações ou as trevas da tirania sobre nossos destinos. Nem estas tantas crianças morrendo por dia. Nem estes tanto milhões de homens morrendo de fome", diz em seu leito de morte Paulo Martins, jornalista fictício dividido entre a política, a poesia e a luta armada.

Assim era o contexto do filme "Terra em Transe" dois anos antes de estrear sua versão final em 1967. Glauber Rocha (1939-81) escrevia de Roma um dos primeiros tratamentos do roteiro que viria a ser uma das obras mais marcantes do cinema novo, movimento cinematográfico nacional de maior repercussão no exterior.

Os personagens, caricatos, representavam classes sociais e grupos das mais variadas vertentes. Na versão de 1965, Silvino, protótipo do reacionário Diaz, tem uma pistola Luger em referência ao nazismo. Betty, moradora de um apartamento de cobertura em Copacabana, "cai no santo" num ritual de Candomblé para a elite.

Quando sobe ao poder, o populista Silveira, posteriormente chamado de Vieira, demite comunistas de seu governo para evitar provocações.

A ideia era fazer uma espécie de continuação de seu segundo longa, "Deus e o Diabo na Terra do Sol".

Foi apresentado à imprensa em 13 de março de 1964 –mesmo dia do comício da Central do Brasil, parte de um processo que desembocou no golpe militar, em 1º de abril daquele ano.

A obra acaba embalada pela a música "O Sertão Vai Virar Mar", com os sertanejos Manuel e Rosa correndo do interior do Nordeste para o litoral após uma briga de cangaço. "Terra em Transe", por sua vez, se inicia num plano aéreo que vai do mar à terra firme.

Cinemateca Brasileira
Fac-símile de uma página do roteiro de ‘terraemtranse’
Fac-símile de uma página do roteiro de ‘terraemtranse’

Com desenhos e anotações de Rocha, o rascunho desdobrou-se, ainda, de outro roteiro: o nunca filmado "América Nuestra". Idealizado em 1962, o argumento buscava discutir dilemas políticos, sociais e culturais dos países latino-americanos, em um panorama histórico do continente dos Incas às guerrilhas.

Inicialmente chamado de "América Nuestra, a Terra em Transe", o longa, repensado ao longo de anos, amadureceu após a publicação do texto "Estética da Fome" (Rocha, 1965), reconhecido como manifesto do Cinema Novo. O roteiro tinha a intenção de ser dedicado a Che Guevara (1928-1967).

Ele seria filmado em coprodução com equipes de Cuba, Argentina, Brasil e México e pretendia, ainda, ser sua última tentativa de fazer uma revolução por meio do cinema. "Depois, creio, o caminho será o da luta aberta", explica Rocha.

"É um filme muito ambicioso, onde quero mostrar o processo de destruição e libertação da América Latina, desde a destruição dos Incas pelos conquistadores, a influência da igreja, a criação dos latifúndios e da opressão, a chantagem da política civil e por fim as guerrilhas como caminho de liberação. (...) 'América Nuestra' não pretende ser um filme didático, mas um comício, um filme de agitação, um discurso violento e também uma prova de que, no terreno da cultura, o homem latino, liberado da opressão colonizadora, pode criar", diz o diretor em carta a Alfredo Guevara, fundador do Instituto de Cinema de Cuba (ICAIC), em julho de 1967.


Endereço da página:

Links no texto: