Folha de S. Paulo


Selo lança gravação de recital do Duo Abreu, dos irmãos Sergio e Eduardo

BBC RECITAL 1970 (ótimo)
ARTISTAS Sergio e Eduardo Abreu
SELO GuitarCoop
QUANTO R$ 30 (CD)

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Um dos melhores álbuns de música clássica de 2017 foi gravado há quase 50 anos: é o recital para a BBC de Londres do duo de violões formado pelos irmãos Sergio e Eduardo Abreu, registrado no dia 20 de outubro de 1970.

Os prodígios cariocas estavam no auge de uma carreira internacional. Sergio tinha 22 anos e Eduardo, 21. Eles tocariam juntos por mais cinco anos, quando o caçula abandonou os palcos. Após atuar alguns anos como solista, Sergio passou a se dedicar só à construção de violões, tornando-se renomado luthier.

Três LPs foram suficientes para que o Duo Abreu passasse a ser reverenciado. O inaugural "The Guitars of Sergio and Eduardo Abreu" (1968), um segundo disco de mesmo nome (1969) –mas com repertório diferente–, e "Two Concerts for Two Guitars" (1970), gravado com a mítica English Chamber Orchestra.

O recital para a BBC circula há tempos em cópias piratas desde a época das fitas cassete. Mas só agora, por iniciativa da Guitarcoop –com trabalho primoroso do engenheiro de som brasileiro Ricardo Marui–, o álbum tem lançamento oficial.

É impossível passar incólume pela escuta das seis peças de Rameau (1683-1764) que abrem o recital. O rigor estilístico da performance em nada foi abalado pelas exaustivas pesquisas musicológicas realizadas nas últimas décadas. A gravação estava e está à frente de sua época.

MATURIDADE PRECOCE

A garra juvenil dos meninos alia-se a uma maturidade inexplicavelmente conquistada de modo precoce. Há também um tipo de mágica no entrosamento, na perfeição das articulações, no som.

Escritas originalmente para cravo em 1726, as peças de Rameau foram arranjadas para dois violões pelo próprio Sergio Abreu.

"Allemande", a primeira delas, emociona pela condução pacífica, pelo direcionamento, pela simplicidade. Tudo está no lugar, e a ornamentação nunca vira um fim em si, como em certo "deslumbramento barroco" comum a violonistas atuantes nas últimas décadas.

Uma sedução estranha emana de "Le Rappel des Oiseaux", e –coisa extremamente rara nesses tempos de escuta rápida e fugaz– nos faz querer voltar a faixa sem parar, em busca de algo indefinível que ao mesmo tempo está e não está na materialidade do som.

Cada faixa tem integridade e elegância próprias, e "Les Cyclopes" encerra a sequência com coesão assustadora, como se as notas saíssem da partitura e tomassem vida, caminhassem, respirassem.

Pontos altos do repertório do Duo Abreu são também os dois "Prelúdios" e "Fugas" extraídos do ciclo "Os Violões Bem Temperados", do imaginativo compositor italiano Mario Castelnuovo-Tedesco (1895-1968), assim como a "Toccata" K.141 de Domenico Scarlatti (1685-1757).

DEDILHADOS IMPROVÁVEIS

Os apreciadores das componentes técnicas do instrumento encontrarão escalas rápidas com dedilhados improváveis, baixos estupendamente encorpados, acordes profundos e memoráveis seções de notas repetidas em velocidade.

A ampla gama de cores e gradações de dinâmica das interpretações têm origem nos instrumentos raros que os dois utilizam. A saber, um violão Hermann Hauser de 1930 e um Santos Hernández de 1920.

Os irmãos começaram a aprender violão muito jovens, inicialmente com o avô materno, depois com a argentina (então radicada no Rio de Janeiro) Monina Távora (1921-2011), professora de ampla cultura musical e humanística e discípula direta do espanhol Andrés Segovia (1893-1987), "o" nome central do violão clássico no século 20.

Anos depois ela daria aulas também para os irmãos Sergio e Odair, do Duo Assad.

Ao estrearem em Londres com cerca de 15 anos –após alguns anos de minuciosa preparação–, os Abreu foram imediatamente reconhecidos pela crítica como "o melhor duo de violões do mundo".

Fizeram turnês que duravam meses, do Canadá à Austrália, passando (em plena Guerra Fria) pela União Soviética. Apresentaram-se nas principais salas de concerto do mundo, como Wigmore Hall, em Londres, e Concertgebouw, em Amsterdã.

No CD da BBC lançado pela GuitarCoop, podemos apreciar igualmente alguns solos dos dois, os quais eram entremeados às obras em duo em seus recitais ao vivo.

A exuberante técnica de Eduardo é colocada à serviço da "Sonatina Meridional", de Manuel Ponce (1882-1948).

O irmão mais velho mantém-se no orbe barroco: toca a "Sonata" K.391 de Scarlatti, e faz uma versão tocante da "Passacaglia" em ré maior do alaudista alemão Sylvius Leopold Weiss (1687-1750), um amigo da família Bach.

Fecha o disco (em duo) a "Toccata" do austríaco Franz Burkhart (1902-78).

FILA DE ESPERA

Hoje em dia, Sergio segue confeccionando instrumentos artesanais sob encomenda –a fila de espera é longa. Ele produz cerca de uma dezena de violões por ano.

Alheio à proximidade da famosa praia, trabalha nas madrugadas, em um apartamento-oficina em Copacabana. De Eduardo pouco se sabe, quase nada se fala. Este trocou a carreira de músico pela de engenheiro. O duo excursionou de 1968 a 1975.

Para quem convive há muito com essas gravações, é possível discernir no todo sonoro as características individuais dos dois irmãos.

Eduardo causa admiração pelo domínio extremo do movimento das formas musicais. Seu relaxamento é total, assim como o controle das gradações sutis que alteram tempos e intensidades.

Sergio adiciona introspecção à perfeição exuberante. Ele é a alma do duo: saboreia cada momento com a nostalgia do futuro, como se, a cada nota pulsada, sentisse o vazio tomar conta do lugar de onde se tira a beleza.


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