Folha de S. Paulo


Crítica

Obra de John Donne é ampliada e ganha aprofundamento crítico

POESIA RELIGIOSA (ótimo)
AUTOR John Donne
TRADUÇÃO Marcus de Martini
EDITORA UFSC
QUANTO R$ 40 (320 págs.)

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Pelo menos desde o seminal "Verso, Reverso, Controverso", de Augusto de Campos (1978), o nome de John Donne vem circulando em português para os interessados em poesia.

No livro, Augusto reelaborava um artigo originalmente publicado em 1965 sob o título de "A Meta Física dos Metafísicos", para mostrar como os poetas metafísicos ingleses, Donne incluso, usavam um jargão teológico, abstrato e sutil, para falar de sua vida sexual e amorosa.

O efeito foi certeiro, ainda mais depois de ampliado em "O Anticrítico" (1986); assim Donne surgiu como poeta forte em português e um trecho da tradução de Augusto de Campos para "Elegy: Going to Bed" foi utilizada por Péricles Cavalcanti para compor a canção "Elegia", que ganhou fama na voz de Caetano Veloso, no álbum "Cinema Transcendental" (1979).

No entanto, Donne, como todo grande poeta, é maior que qualquer leitura e precisa sempre de frentes novas, ampliação dos poemas traduzidos, revisão crítica etc.

É o que aconteceu em parte com a publicação dos "Sonetos de Meditação" traduzidos por Afonso Félix de Sousa (1985); dos estudos de Paulo Vizioli, "John Donne: o Poeta do Amor e da Morte" (1985)), e de José Garcez Ghirardi, "John Donne e a Crítica Brasileira: Três Momentos, Três Olhares(2000); bem como da prosa de suas "Meditações", traduzidas por Fabio Cyrino (2007); além da antologia portuguesa "Elegias Amorosas", traduzidas por Helena Barbas (1997) e de outros trabalhos esparsos.

Reprodução
Retrato sem data do poeta jacobita inglês John Donne (1572-1631)
Retrato sem data do poeta jacobita inglês John Donne (1572-1631)

Nessa linha contínua de ampliação e aprofundamento crítico da obra de Donne, temos agora a nova tradução de Marcus de Martini, contemplada com o Prêmio Cleber Teixeira 2016 de Tradução de Poesia.

Mais do que uma tradução poética, temos aqui um longo estudo introdutório sobre o autor e sua obra, com um resumo de sua recepção no Brasil. Em seguida, vêm as traduções bilíngues, acompanhadas de notas interpretativas para cada um dos 30 poemas recolhidos. Por fim, um excurso sobre a questão da teologia na obra de Donne.

Vejamos então a abertura do "Hino a Cristo": "Qualquer barco partido em que meu corpo embarca,/Esse barco ser-me-á emblema de tua Arca;/Qualquer mar que pr'as suas entranhas me arranque,/Tal dilúvio será emblema do teu sangue./Muito embora com nuvens de fúria ocultais/Vossa face; vejo inda esses olhos, os quais,/Embora algumas vezes se desviem,/Não irão desprezar jamais."

Na tradução de Martini, temos os ecos etimológicos do original (embarke / Arke), o mesmo jogo de rimas em AABBCCDC, e uma variação métrica similar de versos de 12, 10 e 8 sílabas (no original 10, 8 e 6 sílabas), com um resultado claro e fluido, que mantém o tom reflexivo do poema e seu aspecto oratório.

O resultado é, de fato, como bem observa Lawrence Flores Pereira, "uma contribuição notável", cuidadosa no desafio de manter o difícil jogo conceitual, rítmico e rímico de Donne.


GUILHERME GONTIJO FLORES é poeta, tradutor e professor de Latim na UFPR


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