Folha de S. Paulo


Militância e 'linchamentos' inspiram ensaio 'A Vítima Tem Sempre Razão?'

Mauro Franceschetti/Divulgação
O escritor Francisco Bosco, autor de
O escritor Francisco Bosco, autor de "A Vítima Tem Sempre Razão?", em sua residência no Rio

"A Vítima Tem Sempre Razão?", pergunta o título do novo livro de Francisco Bosco, publicado pela Todavia.

Aos 41, o ensaísta carioca já publicou livros de poesia, compôs letras de música com o pai, João Bosco, e foi presidente da Funarte, da qual se desligou em 2016, após o afastamento de Dilma Rousseff.

Agora, na obra de subtítulo "Lutas identitárias e o novo espaço público brasileiro", ele analisa casos em que pessoas foram repudiadas por ofender minorias —às vezes injustamente, defende o autor, no que gerou reação acalorada principalmente do movimento feminista.

Bosco chama as redes sociais de novo espaço público e o credita a três fatores: as manifestações de 2013, que explicitaram conflitos da sociedade, o colapso do lulismo, que, diz, derrubou o "mito da cordialidade", e a popularização das mídias sociais.

Nesse espaço ganham corpo as lutas identitárias: ações por direitos e igualdade de grupos minoritários ou vulneráveis, como negros, indígenas, gays e mulheres.

Bosco propõe analisar tais enfrentamentos. De um lado, a resistência dos detentores do poder, exercida, diz, por "mecanismos mais ou menos sutis de discriminação".

De outro, os linchamentos virtuais ("public shaming", na boa definição em inglês), por parte dos grupos minoritários, contra instituições e principalmente indivíduos.

A Vítima Tem Sempre Razão?
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Exemplo pinçado no livro é o da americana Justine Sacco. Em 2013, no aeroporto em Nova York prestes a viajar à África do Sul, ela escreveu no Twitter: "Indo para a África. Espero não pegar Aids. Brincadeirinha. Sou branca!".

Nas 11 horas do voo, a publicação viralizou, acusada de racismo, e Sacco virou inimiga pública mundial —foi demitida antes de descer do avião. A respeito, diz o autor: "As bombas dos linchamentos devem ser desarmadas".

CASO CONCRETO

Entre os seis episódios analisados estão a reação ao vídeo de "Você Não Presta", de Mallu Magalhães, acusado de incentivar a sexualização do negro, e o caso do professor Idelber Avelar, que teve vazadas conversas com mulheres e foi acusado de assédio e manipulação psicológica.

Negros e mulheres, vale notar, são o foco do livro, que passa ao largo de eventos sobre LGBTs, por exemplo.

"Não encontrei 'tretas' exemplares de premissas e métodos que gostaria de debater. Mas isso de modo algum significa que eu tenha as questões LGBTTQI [lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, queers e intersexuais] como de menor importância", diz Bosco à Folha, por e-mail.

Nos casos envolvendo mulheres, o autor se concentra nas "radfems", as feministas radicais. Na definição dele, a corrente, que ganhou vulto nos anos 1980, preconiza que "vivemos em regimes patriarcais" com "relações tão intensas de dominação" que " toda a experiência da heterossexualidade é abusiva".

Ele questiona o quanto sociedades democráticas contemporâneas são patriarcais e conecta ataques como os do caso Avelar à falta de autonomia da mulher sobre seu desejo.

POLÊMICA

Bosco conclui o ensaio em um apelo para evitar "tretas", mas a reação tem sido outra.

Na crítica "O crepúsculo do esquerdomacho", publicada na revista literária "Quatro Cinco Um", Manoela Miklos, ativista feminista e coautora do blog #AgoraÉQueSãoElas, da Folha, acusa o autor de "reproduzir clichês de classe" e "tentar traçar limites para a atuação de minorias".

"Talvez esteja na introdução o momento mais flagrante do subtexto que permeia o livro, certa dificuldade em lidar com o feminismo travestida de 'preocupação' com possíveis exageros."

A resenha motivou réplica, intitulada "Aos argumentos, cidadãos", na qual diz que Miklos se esquivou de debater premissas e identifica em sua militância "discursos dogmáticos".

"A história já conheceu episódios em que grupos, imbuídos de certezas inabaláveis, cometeram injustiças."

A obra será lançada em São Paulo na terça (21), às 19h30, na livraria Cultura do Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073), em bate-papo com Helena Vieira e Maria Rita Kehl.

A seguir, leia a entrevista com Bosco.

*

Folha - O livro foi pensado para um público específico?
Francisco Bosco - Idealmente, ele se dirige tanto às pessoas que têm tomado conhecimento das lutas identitárias por meio dessas "querelles" sucessivas (as marchinhas recusadas no Carnaval, o caso do turbante, as denúncias de assédio sexual etc.), mas não têm maior familiaridade com o tema, quanto aos militantes identitários. Aos primeiros, ofereço uma fundamentação filosófica. Aos demais, apresento algumas críticas. Quanto a esses últimos, a maior chance é de que não debatam meus argumentos, desqualificando-os a priori como vindos de um homem, branco, hétero, cis e de classe alta.

Houve críticas ao título, visto como chamariz sensacionalista. Por que a escolha?
É verdade, muita gente se sentiu ofendida. Eu me surpreendi com isso. Afinal, a premissa de que "a vítima tem sempre razão" é um pleonasmo. Ou se deve antes provar que a vítima é uma vítima, ou, se já está provado que é vítima, é lógico que tem razão.
Mas o que faço no livro é justamente mostrar por que, apesar de tudo, a frase tem sua razão de ser. Minha hipótese: sempre desqualificadas a priori, as mulheres resolveram inverter o jogo e passaram a se considerar certas também a priori.

No início, o sr. se classifica "de fora" dos grupos minoritários. Por que seguiu em frente?
Porque "lugar de fala" é uma noção relevante demais para não ser discutida. Em uma de suas faces, ela defende que vivências concretas permitem o acesso a dimensões da vida social que a mera abordagem teórica não alcança.
É preciso portanto abrir radicalmente o espaço público a essas vozes historicamente subalternizadas. Mas, na outra face, ela afirma que a posição política de um indivíduo só pode corresponder aos seus interesses estruturais. Isso não é verdade. Todo indivíduo, como propõe Kant, habita uma tensão entre o interesse pessoal e o dever, que é o interesse do outro, da coletividade. Não me parece bom politicamente anular a dimensão do dever.

Por que criticar o feminismo a partir de sua leitura mais radical e, portanto, minoritária?
Ela não me parece minoritária. Quando se analisa essas dinâmicas de denúncias, percebe-se que são as ideias das "radfems" que estão por trás.
Desde a interpretação de interações heterossexuais consentidas como sendo assédio ou estupro, até as denúncias de "relacionamentos abusivos": no fundo, está a ideia de que a mulher, em sociedades patriarcais democráticas modernas, não tem condições suficientes de autonomia para se responsabilizar por seu desejo. Considero isso falso.
Esses casos são, é importante que se diga, decisivamente diferentes de casos como os de um Harvey Weinstein [produtor americano recentemente acusado de assédio sexual e estupro por atrizes de Hollywood].

Além disso, tem-se a impressão de que os casos apresentados envolvendo racismo e o movimento negro são de mais fácil adesão do que os casos envolvendo mulheres. Como você escolheu os casos que seriam tratados no livro?
Não sei se são mais fáceis de desmontar. O caso do turbante dividiu muito as pessoas. Não me parece simples. Justamente, ofereço um recuo histórico para pensar o conceito de apropriação cultural, sua pertinência descritiva e, ao mesmo tempo, sua dificuldade de se traduzir em ações igualmente pertinentes. Sobre os casos envolvendo certos discursos feministas, minha hipótese é de que as ideias das "radfems" americanas dos anos 1980 têm orientado várias denúncias contra homens. Considero essas ideias fundamentalmente equivocadas, e me pareceu importante discuti-las.

Na réplica à resenha da Miklos e no livro, o sr. relativiza a falta de autonomia das mulheres. Isso faz sentido no Brasil, onde 12 mulheres são mortas e 135 são estupradas por dia?
É claro que há um desequilíbrio estrutural na experiência dos gêneros. Essas assimetrias devem ser combatidas, não há dúvidas. Mas não se pode tratar a ideia de patriarcado de forma ahistórica. Houve conquistas importantes do feminismo. São tais que não permitem ser verdade a imagem de uma mulher incapaz de responder pelo seu desejo.
É claro que estupros são uma tragédia e devem ser punidos com todo o rigor possível. Assim como toda forma de coerção, assédio etc. A questão, entretanto, é: parte do que vem sendo considerado assédio, abuso e mesmo estupro decorre da interpretação da experiência heterossexual nos termos das "radfems". Meu apelo é para que se julgue cada caso.

Percebemos uma tentativa de se manter no calor do momento, refletida na escolha de casos bem recentes para analisar. Quando o sr. começou a escrever o livro? Quanto tempo levou para terminá-lo?
Levei cerca de um ano para pesquisar e escrever o livro. Percebi que as "tretas" digitais estavam espoucando sucessivamente e senti falta de um recuo teórico capaz de oferecer às pessoas melhores condições de se posicionar diante desses conflitos. É esse o objetivo do livro.

Como o sr. se identifica no espectro político tradicional da esquerda à direita passando pelo centro? Por quê?
Me considero de esquerda. Uma esquerda que reúne traços da esquerda originária (surgida no contexto da revolução francesa), da esquerda marxiana e da esquerda pós-68. Da primeira vem meu compromisso inarredável com a democracia. Da segunda, a ênfase na necessidade de promoção de igualdade econômica (mas seu compromisso relativo com a democracia e liberdades individuais me afasta dela). Da última, trago os traços do respeito às liberdades individuais e, justamente, do reconhecimento das questões identitárias. Por fim, não pode haver esquerda hoje que deixe fora do centro de suas preocupações a questão ambiental (o antropoceno e seus efeitos).

Já no início do livro, o sr. questiona a dinâmica segundo a qual "aliados fundamentais são transformados em adversários"; trata-se de um chamamento à união?
Não exatamente. "União" talvez seja uma palavra encobridora de tensões irredutíveis e necessárias. O que vejo é que há um desequilíbrio entre as dinâmicas de bonding e bridging [nota: são termos descritos no livr; "bridging" deriva de "bridge", "ponte" em inglês, e diz respeito ao estabelecimento de conexões, ainda que às custas de concessões; "bonding" se refere à adesão entre indivíduos portadores de características semelhantes entre si, ainda que às custas de quantidade maior de apoiadores], em prejuízo das últimas. Estabelecer alianças coesas, fundamentadas numa identificação grupal (bonding) é importante: fortalece psicologicamente e propicia organização. Mas ser capaz de se associar politicamente a setores de fora do grupo não é menos importante, pois é o que efetivamente faz as agendas concretas avançarem.

O sr. diz ainda que tal desequilíbrio entre as estratégias tem como consequência uma maior dificuldade em fazer avançar agendas concretas. Quais agendas vêm sendo afetadas por isso?
Em democracias representativas, qualquer agenda precisa de maiorias para poder se efetivar institucionalmente (a menos que se esteja no governo Temer). Você precisa convencer a maior parte da sociedade a apoiar representantes dessas pautas. Me parece que as lutas identitárias contemporâneas dão maior ênfase à tentativa de desconstrução dos preconceitos sociais: da cultura do machismo, do racismo, da intolerância ao esvaziamento dos papéis fixos de gênero etc. Estão certas, a meu ver, porque isso não é menos importante. Mas, em meio ao sentido geral justo de suas ações, há premissas e métodos equivocados, que tendem a fazê-las perder o apoio de outros setores.


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