Folha de S. Paulo


Seminário da USP apresenta 'Dia de Bomba', conto inédito de João Antônio

João Antônio (1937-1996) escreveu sobre menino que subia em caixote para jogar sinuca com adultos, sobre faxineiro de hospício que cantarolava sambas para amanhecer pacientes, sobre porteiro de boate que virava a noite no trabalho, "raspando a velhice".

Eram muito suas as expressões que definiam seus personagens marginais: merdunchos, pingentes, lambões de caçarola.

Nos 15 livros que publicou –muitos durante o regime militar–, nunca fizeram parte do seu escrete personagens ligados a movimentos sociais, a partidos políticos ou à luta armada.

Mas uma descoberta recente põe em xeque o que se sabia sobre a ficção de João Antônio : não é que ele nunca tenha escrito sobre esses temas; ele nunca publicou.

Pesquisador da Universidade Federal de São Carlos, Julio Cezar Bastoni da Silva encontrou recentemente no acervo do escritor o conto inédito "Dia de Bomba", que narra a história de Jonas, personagem que trabalha em um escritório e é levado por um colega à guerrilha contra a ditadura militar.

O achado será apresentado no seminário "80 anos de João Antônio", que acontecerá na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP nos próximos dias 16 e 17 de novembro, com coordenação dos professores Augusto Massi, Clara Ávila Ornellas e Tânia Macêdo.

ACASO

"O conto tem referências diretas a passeatas de estudantes, no Brasil e fora, e a ações de grupos armados, tema que foge muito à sua obra. Provavelmente foi escrito na segunda metade de 1968.

Nessa época, João Antônio escreveu uma carta à amiga e poeta Ilka Brunhilde Laurito contando que a equipe da revista "Realidade" começaria a pagá-lo para escrever contos –não reportagens, mas contos.

Possivelmente "Dia de Bomba" "seria uma dessas produções, quiçá a única, que escreveria a partir desse encargo" comenta Bastoni da Silva. Ele encontrou o texto por acaso, enquanto procurava material que indicasse como o escritor pensava o Brasil no período da ditadura.

"Vi o título "Dia de Bomba" listado numa caixa do acervo dele que fica guardado na Unesp de Assis", recorda o pesquisador.

"Achei que fosse alguma matéria para jornal. Aí vi que era um conto, datilografado e corrigido à mão por ele mesmo, numa pauta da editora Abril. Era sem dúvida a sua letra. O estilo é claramente 'joãoantoniano': frases curtas, pontuação que funciona quase como uma marcação rítmica, e utilização de termos recorrentes em outros contos seus, algumas frases idênticas."

BILHETE

O fato de João Antônio nunca ter publicado o conto, acredita o pesquisador, provavelmente se deve à situação política da época –junto ao texto, havia um bilhete assinado por Paulo Patarra (1933-2008) sugerindo que o escritor o "guardasse".

Julio Bastoni da Silva lembra que a revista "Realidade" vendia muito bem, mas que já tinha sofrido sanções dos militares por conta de algumas reportagens.

"Em dezembro de 1968, veio o AI-5 e, como se sabe, a equipe foi dissolvida depois disso", diz o pesquisador.

"As cartas a Ilka posteriores ao AI-5 são de profundo desalento, de vontade de deixar São Paulo e voltar ao Rio", acrescenta, lembrando ainda que entre 1963 –ano do retumbante sucesso de "Malagueta, Perus e Bacanaço", que levou na estreia dois prêmios Jabuti– e 1975, João Antônio não publicou nem um livro sequer.

"O conto é a prova de que, mesmo sem ter publicado livros naquele período, ele continuava a produzir ficção, não só reportagens ou crônicas", completa Bastoni da Silva.

Para a pesquisadora Clara Ávila Ornellas, do programa de pós-graduação em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa da USP e uma das organizadoras do seminário, o achado amplia as possibilidades de estudo sobre o escritor.

"Trata-se de tema estranho à produção já conhecida, é uma espécie de aprendizado político do protagonista em plena ditadura militar brasileira. Semelhante perspectiva faz-nos refletir, por exemplo, sobre até que ponto o homem brasileiro pode suportar um estado de opressão contínua", conclui Ornellas.

Depois de ser recuperada pela Cosac Naify –que reeditou em 2012 clássicos de João Antônio, como "Ô, Copacabana" e "Abraçado ao Meu Rancor", além de ter reunido todos seus contos conhecidos–, a obra de João Antônio será relançada pela editora 34 no ano que vem.

*

80 ANOS DE JOÃO ANTÔNIO
QUANDO 16 e 17 de novembro
ONDE Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (prédio das Ciências Sociais, sala 08, e prédio de Letras, salas 230, 231, 232 e 234)
QUANTO inscrições encerradas (para participar e para ouvintes com certificado)

*

O seminário é aberto ao público. Veja a programação abaixo.

*

QUINTA, 16/11
(sala 8 - prédio de Ciências Sociais)

9h - cadastramento dos participantes

9h30 - Conferência de abertura: Acervo João Antônio: memórias de um itinerário
Ana Maria Domingues de Oliveira (UNESP-Assis)
Mediadora: Tania Celestino de Macêdo (USP)

10h30 - Mesa 1: Trajetória literária e autobiografia
Coordenadora: Telma Maciel
Rodrigo Lacerda (USP): "A armadilha literária de João Antônio"
Bruno Zeni (Instituto Vera Cruz/USP): "Pra lá de Bagdá - Os textos autobiográficos de João Antônio"
Ieda Magri (UERJ): "João Antônio: experiência e literatura"

12h30 Intervalo para almoço

14h30 - Mesa 2: Leituras e correspondência
Coordenadora: Ieda Magri
Vima Lia de Rossi Martin (USP): "'Primeiro abalo na minha vida. Mas eu não disse nada': considerações sobre a elaboração de 'Fujie'"
Telma Maciel da Silva (UEL): "Edição anotada da correspondência João Antônio & Jácomo Mandatto: desafios metodológicos"
Wagner Coriolano de Abreu (UFPEL): "Corações rueiros: João do Rio na prosa de João Antônio"

SEXTA-FEIRA, 17/11
(sala 8 - prédio de Ciências Sociais)

9h - Mesa 3: Um João Antônio desconhecido
Coordenador: Wagner Coriolano de Abreu
Júlio Cezar Bastoni da Silva (UFSCar): "Um 'conto-bomba' de João Antônio"
Renata Ribeiro de Moraes (UNESP-Assis): "Cartões-postais: rotas extraliterárias de João Antônio"

*11h - Conferência: "Roteiro de leitura: o livro dos roteiros (Calvário e porres do pingente Afonso Henriques de Lima Barreto)"
Augusto Massi (USP)
Mediador: Júlio Cezar Bastoni da Silva (UFSCar)

12h - Intervalo para almoço

14h - SESSÕES DE COMUNICAÇÕES - PRÉDIO DE LETRAS

Sala 230

Sessão A: Estado da ralé: João Antônio escreve o Brasil
Coordenador: Bruno Zeni
Adriano Guilherme de Almeida: "João Antônio e o corpo-a-corpo com a vida brasileira"
Leandro de Oliveira Lopes: "Paulinho duma Perna Torta e o fato social brasileiro"
Raquel Aparecida de Freitas: "De 'Gegê' a 'Ditador': ações de referenciação construtoras do ponto de vista do narrador de 'Lambões de Caçarola'"
João Bense (USP): "Notas sobre Toni Roy Show"

Sala 231

Sessão B: Do voo das gaivotas: João Antônio e a filosofia pingente
Coordenadora: Renata Ribeiro de Moraes
Rodrigo Adriano Machado: "Lirismo e confissão feito na margem: uma reflexão filosófica sobre João Antônio"
Maria Luzia Carvalho de Barros: "Apequenamento e libertação: uma leitura de 'Afinação da arte de chutar tampinhas'"
Rodrigo Souza Grota: "Os anos loucos de Londrina: João Antônio e sua colaboração para o jornal Panorama em 1975"

Sala 232

Sessão C: Misturação: os diversos caminhos do andejo
Coordenador: Wagner Coriolano de Abreu
Mariana Filgueiras de Souza: "O bar, a rua, o sanatório: calvário e errância do pingente João Antônio"
Vinícius de Cunha Bisterço: "O espaço amnésico: uma reflexão sobre o conto 'Abraçado ao meu rancor' de João Antônio"
Júlio Cezar Bastoni da Silva: "'Um herói sem paradeiro' e o último João Antônio"

Sala 234

Sessão D: Nenhuma virtude: João Antônio olha para si, olha para o outro
Coordenadora: Roberta Pereira Pires
Talita Gonçalves de Almeida: "As personas de João Antônio em sua correspondência ativa para Ilka Laurito e Jácomo Mandatto"
Eudes Manoel de Oliveira Cardozo: "Cobras e merdunchos: a ética marginal em João Antônio"
Ana Cecília Agua de Melo: "João Antônio em duas visitas a Malagueta, Perus e Bacanaço"


Endereço da página:

Links no texto: