Folha de S. Paulo


Melancolia do campo dá forma ao romance 'Glaxo', de Hernán Ronsino

Luciana Granovsky - 1.abr.2017/Agencia Télam
O escritor argentino Hernán Ronsino, autor de 'Glaxo
O escritor argentino Hernán Ronsino, autor de 'Glaxo'

No século 19 e até princípios do século 20, a literatura argentina tratava principalmente da vida rural e dos embates entre os valores iluministas do então novo mundo urbano chegando aos rincões do país.

Eram os tempos de "Martín Fierro", de José Hernández (1834-1886) e de "Dom Segundo Sombra", de Ricardo Güiraldes (1886-1927).

A essa era seguiu-se uma etapa em que a literatura urbana se impôs, encabeçada pelo cosmopolitismo de integrantes do "boom".

Nos últimos anos, contudo, autores jovens vêm resgatando a tradição de interpretar o país a partir do que ocorre no campo, no interior das províncias e longe do burburinho do porto de Buenos Aires.

Entre eles estão Selva Almada ("O Vento que Arrasa" ), o cordobês Federico Falco e Hernán Ronsino, 42, que tem seu segundo romance, "Glaxo", lançado agora no Brasil.

"Eu moro na capital há 20 anos, mas meus livros ainda são marcados pelo sentimento de desterro e pela minha desilusão de, a cada vez que volto, ver o lugar em que nasci e cresci ser hoje diferente", conta à Folha, em entrevista realizada num café portenho.

Hoje professor de sociologia na Universidade de Buenos Aires (UBA), Hernán Ronsino nasceu em Chivilcoy, uma pequena cidade da Província de Buenos Aires.

"Antes as pessoas ali se dedicavam a várias atividades, e era um lugar onde gente ia e vinha não se sabe bem de onde, um lugar propício para crimes sem solução", conta.

"Hoje o campo na Argentina é diferente, as plantações de soja destruíram florestas, a paisagem é mais tediosa."

Por outro lado, "é um espaço mais conectado, um garoto do campo tem hoje acesso a tudo, enquanto eu passei a adolescência ali apenas esperando livros e discos que alguém poderia me trazer do exterior, via Buenos Aires".

MELANCOLIA

Em "Glaxo", novela contada por meio de distintos personagens e em épocas que vão de 1959 a 1984, esse mundo rural da infância de Ronsino é muito presente.

Sua transformação se espelha no olhar melancólico com que Ronsino narra a dissolução do sistema ferroviário local, no cruzamento de trajetórias de personagens com passados obscuros.

O livro começa com o princípio do levantamento das vias de trem do local, em 1973, mas vai para a frente, com a história de outro personagem, em 1984, e também para trás, em 1959 e 1966.

Ronsino conta que a narrativa desordenada foi imaginada desde o princípio. "Num caderno, escrevi primeiro o nome dos quatro personagens e as datas de cada narrativa e, a partir daí, fui contando cada história."

Muito do que narram os personagens, diz, "fica em aberto, como é a vida". "Por isso também prefiro que os personagens falem e não coloco um narrador que julga. O julgamento fica para o leitor, se assim ele o quiser."

No pano de fundo está o arco de acontecimentos históricos da Argentina da segunda metade do século 20, o que inclui o passado militar.

"Não gosto quando me perguntam por que os escritores argentinos continuam falando de ditadura" diz.

"Rompimentos e traumas como os que vivemos não são fatos que ficam presos no tempo, eles continuam nos causando dano. Não há como entender a sociedade argentina se não levarmos isso em conta e, portanto, esse tema tem de estar na literatura."

Filhos de desaparecidos durante a repressão ainda hoje são encontrados, lembra Ronsino. Mas também em sua trajetória pessoal há marcas.

"Quando eu ia à escola nos anos 1980, já após o fim da ditadura [em 1983], o pátio ainda era dividido entre espaços para meninos e meninas, para não haver contato, seguindo a disciplina militar. Como é possível que isso não continue tendo efeitos no modo como nos relacionamos?".

E conclui: "A história não passa, ela continua, por isso é preciso voltar a ela sempre."

ARTISTA MILITANTE

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Em "Glaxo", ela volta por meio da referência a um dos autores favoritos de Ronsino, Rodolfo Walsh (1927-77), escritor e militante morto pela repressão. "Seus livros jornalísticos tratam do tema, mas também seus contos de ficção, que o fazem de forma mais indireta, e que admiro."

Ronsino menciona, então, uma anedota sobre o famoso panfleto que Walsh escreveu contra a ditadura nos anos 1970, "Carta Aberta de um Escritor à Junta Militar".

"Sua mulher conta que, apesar de ter um tom de urgência típico de um texto militante, ele levou meses para encontrar as palavras, o ponto exato do texto. Mesmo o militante era um artista."

Ronsino criou em "Glaxo" um personagem inspirado num dos repressores que aparecem no principal livro de Walsh, "Operação Massacre".

Nessa obra de não ficção, Walsh relata uma ação da repressão militar do golpe anterior ao dos anos 1970, o de 1955, que derrubou Juan Domingo Perón (1895-1974).

"No livro de Walsh há um oficial sem nome que participa do fuzilamento. Eu imaginei continuar sua história levando-o para a minha narrativa" –o que faz na figura do personagem Folcada.

No momento, Ronsino está terminando outro romance, que trata dos negros na Argentina. Seu objetivo, diz, é "desmontar esse lugar-comum de que aqui não existem negros, que morreram todos nas guerras do século 19".

"A realidade é pior; não é que não existam, mas sim que estão aqui e são invisíveis, e a razão pela qual a sociedade os menospreza ou não quer vê-los é o que estou investigando no novo livro."


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