Folha de S. Paulo


crítica

Filme político, 'No Intenso Agora' é investigação sobre a felicidade

NO INTENSO AGORA (muito bom)
DIREÇÃO João Moreira Salles
PRODUÇÃO Brasil, 2017; 12 anos
QUANDO estreia nesta quinta (9)
Veja salas e horários de exibição

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"No Intenso Agora", o novo documentário de João Moreira Salles, é evidentemente um filme político. Mas é também, e talvez por isso, uma investigação sobre a felicidade.

O que torna as pessoas felizes, do ponto de vista individual e coletivo? Como a felicidade se manifesta? O que a faz desaparecer?

São questões um tanto impalpáveis, que o diretor, entretanto, desenvolve de maneira bastante objetiva, partindo de sua história pessoal até alcançar a história social. Uma das surpresas do documentário, aliás, é o modo como Moreira Salles relaciona preocupações íntimas com fatos decisivos do século 20, como a Revolução Cultural chinesa e as revoltas de 1968.

Para o diretor, os filmes feitos por Elisa Margarida Gonçalves Moreira Salles (1929-1988) na China comunista em 1966 –e por ele resgatados– registram mais do que uma mera viagem turística: eles documentam um estado de intensa felicidade de sua mãe. Mas por que ela (que teve um fim trágico) sentiu-se tão feliz, "com gosto de estar viva", naquele país e naquele momento, em tudo opostos a sua vida de milionária?

"Sempre quis saber o que acontece quando os opostos se encontram", diz no novo documentário o diretor de "Entreatos", sobre a campanha presidencial de Lula em 2002.

Na China, Elisa filma as crianças com o "Livro Vermelho" de Mao Tsé-tung, os slogans marxistas e as paradas políticas, mas não se atenta à revolução em processo.

Não terá sido, porém, a própria revolução, ou ao menos o sentimento de que o imprevisível pode irromper na vida e revolucioná-la que produziu em Elisa a inescrutável felicidade, durante a viagem?

Não foi apenas sua mãe quem experimentou naqueles anos tanta felicidade. Filmes feitos durante o Maio de 68 e reunidos por Moreira Salles testemunham o júbilo dos estudantes com a possibilidade de transformar o mundo e mudar a vida, radicalizando a luta de classes e tentando destruir a tradição burguesa e o capitalismo. Dizia uma das pichações em Paris: "A felicidade é uma ideia nova".

Talvez não fosse, mas a euforia dos manifestantes permite supor que a felicidade não é algo dado, mas que se luta para obter, sendo a própria luta o momento mais feliz.

A luta pela felicidade impregna o agora de uma intensidade ímpar, da qual o gesto livre e destemido que irrompe no espaço opressivo é a manifestação mais sensível –para os estudantes, o enfrentamento nas ruas; para Elisa, quem sabe o ato de filmar, na China maoista, o florescimento de um mundo absolutamente outro. "Será que minha mãe reconheceu a alegria das ruas [no Maio de 1968]?", indaga o diretor na obra.

A mãe, a felicidade, a utopia. Isso pode não dar certo: o pai não demorará a dar as caras. E o pai é Charles de Gaulle com seu apelo à ordem na França, transmitido pela TV e pelo rádio, enquanto, na Tchecoslováquia (em impressionantes registros obtidos por Moreira Salles), o governo soviético reprime duramente a Primavera de Praga.

Segue-se o relato da derrota, com a exibição de uma série de funerais dos insurrectos. As imagens se impregnam de morte e luto. O tempo corre, e o próprio passar conflituoso do tempo, que chamamos história, acaba por contradizer a felicidade que brotou da experiência de um "intenso agora".

"Dificilmente [os estudantes e operários] voltaram a ser tão felizes" após aqueles dias em que ocuparam bulevares e fábricas, proclama o filme.

Moreira Salles pode parecer então ter se extravasado do idealismo lírico para um realismo pessimista ou um nostálgico conformismo. Tenho, porém, outra impressão.

Seu filme é construído com uma série de contrastes: a colorida imagem turística feita pela mãe/o febril preto-e-branco dos noticiários; as palavras idílicas de Elisa/o fervoroso discurso político de Maio de 68; as inquietações pessoais de uma mulher/a exultação coletiva dos jovens na França.

São termos, em geral, inconciliáveis, mas é por meio deles, do choque de suas divergências, que Moreira Salles busca entender como, no bojo da história, relacionam-se a tragédia de um com a de muitos, a felicidade de um com a de todos.

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Assista ao trailer de 'No Intenso Agora'

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