Folha de S. Paulo


Diário nunca lançado orienta a 1ª mostra dedicada a Leonilson nos EUA

João Caldas/Folhapress
Leonilson em São Paulo, em 1987
Leonilson em São Paulo, em 1987

"Eu fico pensando nessa cidade onde as pessoas compram, compram, compram, compram coisas que elas não precisam", disse Leonilson, em seu diário nunca lançado. "Eu tô em Nova York e aqui da minha cama dá pra eu ficar vendo o Empire State Building. Ele tem um pedaço vermelho, um pedaço branco, um pedaço azul. Essa cidade é ficção científica para mim."

Numa vitrine da Americas Society, umas tantas quadras ao norte do arranha-céu mais famoso de Manhattan, está exposta essa quase ficção de um artista que se tornou superlativo nos últimos tempos.

O diário obsessivo, às vezes fantasioso, que ele ditou a um gravador, transformado depois de sua morte num amontoado de páginas fotocopiadas por amigos, quase não chama a atenção nessa primeira exposição dedicada só a ele nos Estados Unidos.

Mas isso tem peso histórico. "Frescoe Ulisses", como o artista batizou o volume, estreia para o público junto do primeiro olhar de fôlego sobre ele em solo americano.

O documento censurado até agora pela família do artista, visto como um cronista melancólico e solitário da dor de uma geração, emoldura as escolhas da mostra e chancela a narrativa que a crítica construiu em torno dele desde sua morte, em decorrência da Aids, aos 36, em 1993.

Suas estratégias descarnadas de expor os próprios traumas e dramas, aliás, embasaram a febre em torno de Leonilson, que vem aumentando ao longo dos últimos anos.

Mas Nova York, onde sua fama ainda mal altera o termômetro, sente só agora os primeiros sintomas da doença, ou culto, em torno deste que foi um dos maiores pintores da segunda metade do século 20 no Brasil e nome central de uma onda da arte contemporânea calcada em confissões autobiográficas.

"Ele usa a autobiografia como um projeto em que os limites da realidade e da ficção se perdem", diz Gabriela Rangel, que organiza a mostra.

"Foi uma exigência minha mostrar o seu diário, e a família entendeu. Esse livro prova que ele construiu um projeto autobiográfico, e que essa biografia tem momentos opacos e mais discerníveis."

Entre os mais explícitos, as pinturas da década de 1980 na última ala do centro cultural, com frases e palavras que resumem seu estado de espírito, dão pistas mais precisas. Mas a potência acachapante —mais opaca e subterrânea— de seu trabalho se revela logo na primeira sala.

Suas obras mais delicadas e intimistas ali fazem o público colar os olhos nas paredes das pequenas galerias do casarão na Park Avenue. Entre elas, está talvez a peça mais cobiçada e poderosa de toda a sua história —uma pequena tela de tecido transparente em que ele bordou "José".

Esse autorretrato austero aparece ao lado da pilha de papéis de seu diário íntimo e de outra peça fundamental, que marca os primórdios de sua transição da pintura para os bordados minimalistas.

"Mirro", alusão à palavra para espelho em inglês e francês, é um pedaço de jeans dentro de uma caixa em que retalhos do tecido formam um rosto estilizado. No lugar da boca, Leonilson costurou ao contrário o termo que dá nome ao trabalho, como se visto refletido num espelho.

É um dos primeiros autorretratos de sua obra, que se divide ao longo de três décadas entre a verdade e a ficção.

Quase desconhecido dos americanos, Leonilson é comparado em Nova York a artistas que também enfrentaram o horror da Aids. Um deles é Felix González-Torres, cubano radicado em Manhattan que criou esculturas minimalistas em alusão à morte de amantes e namorados ceifados aos montes pela doença.

Nessa mesma linha, está um travesseiro em que o brasileiro bordou num canto a palavra "ninguém", um lamento de fundo romântico diante do pavor da solidão.

Mas, além dessa batalha para sobreviver, o tom confessional das obras de Leonilson, quase gritos de socorro, parecia antecipar na década de 1990 uma estratégia plástica que foi se consolidar só agora na geração dos selfies.

"Não há nenhum tipo de filtro aqui", diz Rangel, a curadora. "Ele é um artista que expõe sua vida privada para falar da vida privada dos demais. Já passou da hora de contextualizar sua obra a partir disso, que é algo que os artistas de hoje estão fazendo."


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