Folha de S. Paulo


Opinião

Só associa censo à censura quem tem segundas ou más intenções

É história mais do que conhecida: José e Maria saíram de Nazaré, onde moravam, para ir até Belém, mesmo Maria estando grávida, para obedecer a um decreto de César Augusto. O imperador queria recensear a população da Galileia e cada indivíduo deveria ser registrado em sua cidade de origem, devendo ser acompanhado, nessa viagem, por mulher, filhos e escravos.

É claro que a finalidade do censo, naquela época, não era meramente catalogadora. Ao recensear-se, cada pessoa tornava-se mais sujeita a taxações e, ao mesmo tempo, era obrigada a jurar fidelidade a Roma.

Há muito que se conhece o uso ideológico e manipulador de determinados recenseamentos. Não é à toa, portanto, que esta palavra, "censo", que na origem tinha o sentido de avaliar (saber o valor) e registrar, tenha rapidamente adquirido a conotação de impedir, barrar e rejeitar.

O mesmo censor que estabelece o censo é o censor que estabelece a censura, ao menos etimologicamente. A palavra é exatamente a mesma.

A Bíblia, os evangelhos e os evangelistas não se cansam de condenar o censo romano por ter obrigado a família de Jesus a ir até Belém, ocultando, com isso, um objetivo repressor.

Entretanto, muitos dentre os atuais evangélicos, mas não somente eles, incluindo aí o santificado MBL (Movimento Brasil Livre), integrantes da novíssima direita, bolsominions e afins, hoje brandem orgulhosos o estandarte da censura e não se envergonham de se assumirem censores. Ocultando a repressão, ostentam avaliação: é pedofilia, é zoofilia, é imoralidade, é degeneração. Mas redundam sempre, e necessariamente, na propaganda e na manipulação.

E, em nome do que denominam constatação inegável de una classificação, se arrogam, portanto, o direito de um impedimento.

Ora, desde quando classificar negativamente -com todas suas dificuldades, pois nem mesmo uma classificação científica é totalmente consensual- tem como consequência lógica censurar? Afinal, a dor e a delícia da democracia é mesmo esta: alguns gostam, outros não; frequenta quem quer.

Só associa censo à censura quem tem segundas -ou más- intenções.

A sanha classificatória só se justifica para aqueles dispostos a, partindo dela, oprimir, censurar.

Censo e censura têm a mesma origem etimológica. Não podemos deixar que, na atualidade esclarecida, continuem sendo a mesma coisa.

NOEMI JAFFE é crítica literária e autora de "Não Está Mais Aqui Quem Falou" (Companhia das Letras).


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