Folha de S. Paulo


Crítica

'Stranger Things 2' perde impacto, mas faz boa aposta em personagens

STRANGER THINGS - 2ª TEMPORADA (ótimo)
CRIADORES Matt Duffer e Ross Duffer
ELENCO Winona Ryder, David Harbour, Millie Bobby Brown e Sadie Sink
QUANDO a partir desta sexta (27), na Netflix

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Há algo de podre na cidade de Hawkins. Mesmo. Todas as abóboras das plantações murcharam e pretejaram da noite para o dia, quando foram cobertas por uma nuvem de moscas. A praga tem mais de terror de Dia das Bruxas do que de chaga bíblica, e é o ponto de partida para a segunda temporada de "Stranger Things", série da Netflix cujos nove capítulos foram disponibilizados nesta sexta (27).

O Halloween está chegando e, junto com ele, os velhos demônios que fizeram da série —um suspense protagonizado por uma turminha de americanos nos anos 1980— um dos maiores acertos do ano passado.

O menino Will Byers (Noah Schnapp), que na primeira temporada sobreviveu a uma abdução por monstros de um mundo bizarro, volta traumatizado. E talvez suas sequelas vão além do psicológico, e ele possa ter trazido algo com ele. Paramos por aqui para não incorrer num spoiler doloso.

A mãe de Will, Joyce (Winona Ryder, para quem o tempo parece não passar desde que ela estreou na TV, nos anos 1980, claro) tampouco parece ter se recuperado do trauma. Fica paranoica. Trata o filho como um bebê, sob o pretexto de que ninguém está seguro.

Especialmente Eleven, a menina telepata usada como arma da Guerra Fria, que conseguiu fugir dos cientistas que a exploravam, mas agora vive escondida. Assim como o bem não morreu, o mal parece ter mudado. Manifestações mais concretas de que algo está errado com a cidade aparecem logo no começo da temporada, e afetam outros personagens, não apenas a patota dos protagonistas.

Os monstros nomeados pelos pré-adolescentes deixam de ser vistos como maquinação infantil, e passam a ser levados a sério por alguns dos adultos mais céticos da primeira temporada (sim, aquele mais amargo e turrão de todos, inclusive). O mal ganha carne, osso, ectoplasma, garras e rabos.

É aí que se perde um pouco do lustro da primeira temporada, em que o espectador descobria bem aos poucos que o mundo paralelo dessas crianças não era de fantasia. Mas, fazer o quê?, é impossível dar o mesmo susto duas vezes.

A série parece aceitar bem que não repetirá o mesmo impacto de sua temporada de estreia, e investe em mostrar o amadurecimento dos personagens. Se fosse de fato filmada nos anos 1980, os moleques e molecas teriam suas bocas lavadas com sabão pelas mães menos instruídas por manuais de criação. É uma sucessão de "me$#a!" pra cá e "p$#ra" pra lá.

Outra mudança é o destaque conquistado pelas mulheres. Além de Winona, uma menina forte estreia na série. É Max (Sadie Sink), skatista que acaba de se mudar para a cidade e tem mais tutano que os quatro moleques juntos. Isso sem falar da extraordinária Millie Bobby Brown, a Eleven, para quem "Stranger Things" pode fazer o que "E.T. - O Extraterrestre" fez para Drew Barrymore —a série é inclusive descendente direta do filme de Steven Spielberg, ambos contos líricos da perda da inocência.

Não é só a estética que o programa resgata dos anos 1980. O ritmo tranquilão da série é impensável para produções pós-MTV, ainda mais se voltada para jovens. Nos quatro primeiros capítulos da nova temporada há uma dúzia de cenas de ação, se muito.

Os primeiros episódios mais parecem um prólogo dos finais, coalhados de revelações e soluções. E talvez seja esse o intuito. Os produtores da série disseram à "Verge" que a temporada é um produto único, para ser assistido numa sentada de quase dez horas, mais do que degustado capítulo por capítulo.

"Stranger Things 2" confia no carisma dos personagens (amplificado pelo talento dos atores) e em um texto afiado para prender a atenção, sem depender de explosões e luzes piscando em abundância. Quando acontece algo extraordinário, é preciso e precioso.


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