Folha de S. Paulo


João Silvério Trevisan expurga relação com o pai em romance desconcertante

Felipe Gabriel - 25.jun.2015/Projetor/Folhapress
O escritor em seu apartamento, em São Paulo; memórias sobre a relação com o pai equivaleram a 'dez anos de terapia
O escritor em seu apartamento, em São Paulo; memórias sobre o pai equivaleram a 'dez anos de terapia'

"Aqui inicio o que pretende ser um ritual de cura. Quem sabe me traga paz."

Assim desfecha-se a introdução de João Silvério Trevisan a "Pai, Pai" (Alfaguara), que lança neste sábado (28), às 11h, na Biblioteca Mário de Andrade (pça. Dom José Gaspar, centro), em São Paulo.

Há décadas referência no ativismo LGBT, Trevisan —também jornalista, dramaturgo e tradutor— foi um dos editores-fundadores, nos anos 1970, do mensário "Lampião da Esquina", pioneiro jornal para os gays brasileiros.

Na literatura, é conhecido principalmente pelo livro "Devassos no Paraíso" (1986), resgate documental sobre a história da homossexualidade no Brasil que ganhará reedição atualizada em 2018.

Agora, ele perpassa acontecimentos marcantes de sua vida, como a passagem pelo seminário, a morte da mãe e o início como escritor.

Mas é mesmo na relação com o pai, moldada em abandono e violência, que se concentra o romance autobiográfico —o primeiro de uma "trilogia da dor", em estágio avançado de produção.

"Fui descobrindo o quanto esse homem está presente em minha vida. Ele marcou tudo com a sua ausência", comenta Trevisan, filho mais velho de um comerciante alcoólatra e intolerante.

"Pai, Pai" divide-se em capítulos curtos. O título deriva de trecho do evangelho de Mateus que o autor, ex-seminarista, interpreta como ilustração de um simbólico abandono de um filho por um pai: o de Jesus por Deus.

Sua matéria-prima são anotações que começou a fazer em 2012, diz, sob a perspectiva de escrever um conto. "Mas a coisa foi tomando corpo."

A organização delas durou quatro meses e resultou em um relato de estrutura mais emocional do que cronológica.

São reminiscências desde a infância em Ribeirão Bonito, no interior de São Paulo, nos anos 1940 e 1950. Nelas, resgata episódios e os ladeia a reflexões sobre filmes, músicas, concertos, o mundo exterior e o momento presente.

Um processo difícil e envolto em muita dúvida, ele diz, em particular quanto à enorme exposição de si mesmo.

"Fiz um balanço, um livro de formação. Não sobrou nada [de fora]. Obviamente corri riscos."

O resultado são revelações íntimas de uma personalidade sensível e de feridas e fantasmas da relação paterna.

Como quando, ao assistir a um longa do cineasta John Ford (1894-1973), identifica-se com um personagem afligido por surras do pai.

"Ou seja: havia mais meninos, além de mim, que apanhavam sem entender. E apareciam nos filmes. A identificação me trouxe alívio", escreve.

Em se tratando de questões familiares, esses riscos acabaram se estendendo ao irmão e à irmã do autor. Não houve constrangimentos, ele diz, mas tampouco imperou leveza.

"Cada filho tem um pai, ainda que seja o mesmo. Foi muito doloroso, pois através da minha viagem, eles foram obrigados a fazer as deles."

De início pungente e até claustrofóbico, o relato avança em outros tons. "Entre a primeira página e a última há grande diferença", reflete Trevisan. "Do rancor e da mágoa até a descoberta do perdão."

O escritor se emociona ao lembrar esse processo, que desemboca em um poema no qual, invertendo sinais, pede desculpas ao progenitor.

"Quando descobri que esse cara tinha sido um infeliz desamparado... Ele não tinha respostas, e as buscou no álcool", diz, emocionado.

CRISE DO MASCULINO

Em seus intentos personalíssimos, o livro toca também um assunto universal: o despreparo dos homens para com a função paterna.

Tema atual e de dimensão nacional em um país em que quase metade dos lares são comandados por mulheres, situação não raro conectada ao abandono paterno.

Afinal questionado, o homem vive uma crise, enxerga Trevisan. "Toda educação masculina é de violência. Não somos preparados para a fragilidade, mas para sermos super-homens."

Por retomar violências ligadas à sexualidade desde a infância, seu relato levanta paralelo com recentes discussões sobre a exposição de menores de idade a obras de arte, que desembocaram em campanhas contra artistas e museus em nome de se proteger a infância.

"Acho uma covardia usar uma criança como um tacape", afirma Trevisan. Para ele, "Essa defesa vem frequentemente de pessoas desestruturadas que tentam exorcizar seus demônios nos outros".

O autor discorda do diagnóstico de uma "onda conservadora". "Não há nenhuma novidade; essas pessoas sempre estiveram por aí".

E, na contramão do senso comum, vê com bons olhos as manifestações desses grupos —muitas vezes frontalmente avessas, por exemplo, aos direitos de homossexuais. "Isso permite que essas ideias sejam confrontadas e debatidas".

REEDIÇÃO

Aos 73 anos, o autor está repleto de projetos. Além da citada trilogia, iniciada com "Pai, Pai", ele escreve um roteiro para cinema e planeja publicações.

Entre elas, um novo romance, um livro de contos e um livro de poesia, seu primeiro no gênero.

Mas antes virá a reedição de "Devassos no Paraíso", sua obra mais famosa, agora pela editora Alfaguara.

Fora de catálogo há mais de dez anos, o título, cujos originais chegam a custar R$ 460 em sebos, será encorpado em cerca de 70 páginas. Devem entrar na nova edição entrevistas que conduziu com nomes como o deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ) e a cartunista Laerte.

Pai, Pai
João Silvério Trevisan
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"O que vou acrescentar são coisas do ano 2000 pra cá, principalmente ligadas à transexualidade e à presença de homossexuais na política", explica Trevisan.

Ele lamenta o que vê como uma representatividade "ainda muito incompleta", mas celebra que a comunidade tenha se fortalecido politicamente, ainda que fora das esferas de poder.

E como é ser gay em 2017 e em 1987, quando da publicação de "Devassos"?

Ganhos e perdas, ele reflete. "Um avanço foram as leis. Um retrocesso é a bancada evangélica. Nada mais maldito do que tentar impor uma democracia dogmática."

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PAI, PAI
AUTOR João Silvério Trevisan
EDITORA Alfaguara
QUANTO R$ 44,90 (252 págs.)
QUANDO Sábado (28), às 11h, na Biblioteca Mário de Andrade (pça. Dom José Gaspar, centro, São Paulo)

João Silvério Trevisan lê trecho de "Pai, Pai"; ouça:

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