Folha de S. Paulo


Aderbal Freire-Filho debate terrorismo em 'Céus', peça do autor de 'Incêndios'

Lenise Pinheiro/Folhapress
Louis Garrel como Godard em cena do filme 'O Formidável
Rodrigo Pandolfo (esq.), Felipe de Carolis, Marco Antônio Pâmio, Karen Coelho e Isaac Bernat em 'Céus'

As personagens e tramas de Wajdi Mouawad estão embebidas da própria história do dramaturgo. Nascido em 1968 no Líbano, fugiu aos dez anos da guerra de sua terra e mudou-se com a família para a França, fazendo depois seus estudos teatrais em Québec, no Canadá.

Nas três primeiras peças de sua tetralogia "Sangue de Promessas" ("Litoral", "Incêndios" e "Florestas"), investiga questões de identidade, origem e conflitos familiares.

Já "Céus", o texto derradeiro, vai por outro caminho (ainda que impregnado das origens de Mouawad): o do terrorismo no mundo contemporâneo. A peça ganhou montagem brasileira no ano passado e estreia nesta sexta (27) uma temporada paulistana.

É a segunda empreitada do diretor Aderbal Freire-Filho e do ator e produtor Felipe de Carolis pela obra do dramaturgo. Eles já haviam montado "Incêndios" (2013), que ficou três anos em cartaz e trazia Marieta Severo no papel de Nawal, mulher de origem árabe que, no seu leito de morte, pede aos filhos que vasculhem seu aterrorizante passado.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Louis Garrel como Godard em cena do filme 'O Formidável
Marieta Severo em frente aos atores Keli Freitas e Felipe de Carolis na peça "Incêndios", de 2013

Obra de maior projeção de Mouawad –também conhecida pela adaptação cinematográfica de Denis Villeneuve, o mesmo de "Blade Runner 2049"–, "Incêndios" foi revisitada neste ano pela dupla. Aderbal dirigiu o tradicional grupo El Galpón, no Uruguai, em montagem com a mesma idealização da brasileira.

NUBLADO

"Céus" surgiu de uma passagem de Mouawad por Nova York, em 2003. Sozinho pela cidade, captava trechos de conversas de passantes. As frases lhe voltaram à mente quando, em uma exposição, fixou-se numa instalação na qual se via um céu, a princípio nebuloso, ficando depois claro, ensolarado e estrelado.

Aquele quebra-cabeça de diálogos, repassado diante da imagem caótica e labiríntica do céu, levou-o à história de um grupo que, isolado num bunker, trabalha para desarticular um atentado terrorista.

Logo de início, um criptógrafo novato (Carolis) chega à célula para substituir um colega (Aderbal, em participação em vídeo) que cometeu suicídio, sem razão aparente.

Os fatos desembocam numa investigação conjunta da morte do criptógrafo e do atentado iminente. As pistas, um tanto abstratas, caminham por um debate sobre a arte e as razões do terrorismo.

O autor, contudo, desvincula o terror contemporâneo de seus clichês. Aqui, as motivações não são religiosas, mas têm origem numa juventude revoltada: tendo sofrido com as guerras recentes, ela agora busca vingança.

É o retrato de uma civilização em crise, diz Aderbal. "Ele tira o atentado do lugar-comum, do motivo religioso, e amplia o debate para um discurso contra a guerra."

Mouawad diz que "Céus" é também um contraponto à tetralogia. A memória e a busca de sentido, tão prezadas nas três primeiras peças, aqui são vistas por outro viés: como esses valores podem levar à perdição da humanidade.

"Ao contrário das outras peças, 'Céus' não consola, é bastante desestruturante", disse o dramaturgo no Festival de Avignon de 2009, quando estreou a montagem original.

TRAGÉDIA

Aderbal identifica nos escritos de Mouawad –hoje diretor do Théâtre National de la Colline, em Paris– uma espécie de versão contemporânea das tragédias gregas.

"As tragédias construíram uma mitologia muito presente hoje. Mas a gente nunca teve a exata medida de como era a relação delas com o público da época. E me parece que o Wajdi é um dos que mais se aproximam dessa relação, com personagens com quem a gente se identifica", diz o diretor, que vê em "Céus" traços de "Édipo Rei" e "Medeia".

Thibaut Baron/Divulgação
Louis Garrel como Godard em cena do filme 'O Formidável
Wajdi Mouawad em cena da peça "Seuls", que ele apresentou em São Paulo em 2015

O autor, continua Carolis, tem "grande habilidade para falar do macro e levá-lo ao micro". "Céus", por exemplo, é narrada em dois planos, o do trabalho desses investigadores e o de suas histórias pessoais, com seus relacionamentos familiares e amorosos.

Para Aderbal, a peça também ressoa questões do Brasil contemporâneo. Em sua discussão sobre a arte (Mouawad, ele mesmo pintor, é um entusiasta das artes plásticas), o trabalho faz lembrar as atuais polêmicas em exposições nacionais, diz o diretor.

"Ele faz um contraponto entre a beleza, a arte dos museus e a feiura da violência na sociedade. É impressionante ver em cena a tragédia do mundo em que a gente vive."

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CÉUS
QUANDO sex., às 20h, sáb., às 21h, dom., às 18h; até 10/12
ONDE Teatro Vivo, av. Dr. Chucri Zaidan, 2.460, tel. (11) 3279-1520 e 97420-1520
QUANTO R$ 50 a R$ 60
CLASSIFICAÇÃO 14 anos

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ator 'mentiu' para comprar direitos

Felipe de Carolis lembra de quando, aos 20 anos, foi à França comprar os diretos da peça "Incêndios", vestido de blazer e uma maletinha à mão.

"Fiquei esperando uns três minutos em silêncio, e ele [o autor Wajdi Mouawad] falou que só estava aguardando as pessoas chegarem. E respondi: 'Não tem pessoas, sou eu só'. Ele deve ter achado que eu era estagiário de alguém ou algo assim", lembra o ator e produtor, hoje aos 28.

Carolis, à época estudante de cinema da PUC-Rio e sozinho na produção, mandara à agência de Mouawad um documento com "garantias" para a montagem brasileira: dizia ali que ela teria direção de Aderbal Freire-Filho e atuação de Marieta Severo. "Mas eu nem sequer os conhecia!"

Quando ele, já com os direitos em mãos, conseguiu enviar o material à atriz, ela pediu que fizessem uma leitura do texto e, em seguida, decidiu produzir a peça ao lado de Carolis.

Em 2013, durante os ensaios de "Incêndios" no teatro Poeira, no Rio, veio outro impulso. Carolis se espantou com noticiários de que poderia haver intervenção militar nas manifestações que ocupavam as ruas naquele ano.

"Na hora, falei para o Aderbal que aquilo lembrava 'Céus'" –mas a equipe estava então concentrada na primeira montagem.

No dia em que estreou "Incêndios", Carolis chegou ao ouvido de diretor para lhe confessar outro segredo: depois do tal ensaio, adquirira também os direitos de "Céus".


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