Folha de S. Paulo


Crítica

'Zama' usa abstração para retratar América do Sul do século 18

Divulgação
Cena do filme 'Zama' de Lucrecia Martel
Cena do filme 'Zama' de Lucrecia Martel

ZAMA
QUANDO 23/10, às 18h20 (Cinearte 1); 31/10, às 13h30 (Espaço Itaú – Frei Caneca)
CLASSIFICAÇÃO 14 anos
ELENCO Daniel Gimenez Cacho, Lola Dueñas e Matheus Nachtergaele
DIREÇÃO Lucrecia Martel
PRODUÇÃO Argentina/Espanha/França/Holanda/EUA/Brasil/México/Portugal/Líbano/Suíça, 2017

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A raridade da obra da cineasta argentina Lucrecia Martel, composta até agora de quatro longas em 16 anos, consegue, em tempos de saturação, atrair uma atenção que não decorre somente do fato de ela filmar pouco.

Os intervalos entre um filme e outro aumentam a expectativa e permitem a cada novo trabalho adensar elementos e depurar formas.

"Zama", nesse sentido, é quase uma abstração e o filme mais difícil de Martel. Ou seja, uma experiência que não se digere em meio à gulodice que a Mostra impõe.

A configuração de filme histórico parece, à primeira vista, romper ou alterar o centro temático da obra da diretora. De "O Pântano" (2001) a "A Mulher sem Cabeça" (2008), ela se concentrou em figuras femininas emaranhadas em ambientes morais e mentais das classes médias.

O universo de "Zama", por sua vez, é a América do Sul, no século 18, lugar onde se reúnem colonizadores brancos, escravos negros e indígenas deixados à parte.

O protagonista, dom Diego de Zama, funcionário da Coroa espanhola, submete os outros enquanto espera, em vão, a transferência para um lugar menos estagnado.

Na outra metade da narrativa, vê-se Zama liderar uma caçada humana, imerso na natureza e exposto a elementos e situações que ele não mais controla.

Assim como nos primeiros longas da diretora, as cenas e situações têm menos peso narrativo que formal e sensorial. "Zama" não é, portanto, um filme descritivo como tantas ficções históricas, mas imersivo.

O sentimento de fora do lugar que acompanha o protagonista se intensifica com as sensações de sujeira, umidade, calor e odor e com os zumbidos que o filme espalha em suas múltiplas camadas audiovisuais.

Mais que isso, o sistema formal que Martel adotou desde seu primeiro longa reafirma-se como princípio estético e político.

Assista ao trailer de 'Zama'

zama

O modo como a diretora argentina enquadra e desenquadra os corpos, mantém no centro ou marginaliza, respeita a unidade física ou violenta a integridade da figura reflete os direitos e poderes de quem está em cena.

Não se trata de uma hierarquia rígida entre masculino e feminino, brancos e negros ou índios, mas de um sistema móvel que acompanha e expressa a posição de cada um nas relações.

Isso pode variar quando se trata de colonizadores e colonizados e se reconfigurar quando as forças da natureza interagem com as dos homens.

O rigor dessas composições, que Martel nos permite admirar sem ceder ao esteticismo, não se resume à beleza no sentido plástico. Por isso, "Zama" está além do que a primeira vista consegue capturar.


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