Folha de S. Paulo


Cético e generoso, Oswaldo Porchat fomentou pensamento crítico no Brasil

Antonio Scarpinetti/Unicamp
Oswaldo Porchat (esq.) recebe do reitor Fernando Costa título de professor emérito da Unicamp em 2011
Oswaldo Porchat (esq.) recebe do reitor Fernando Costa título de professor emérito da Unicamp em 2011

Oswaldo Porchat de Assis Pereira da Silva, professor emérito de filosofia da USP e da Unicamp, morreu neste domingo (15), Dia do Professor, atividade a que se dedicou por quase quatro décadas. Ele tinha 84 anos.

A saúde de Porchat estava debilitada desde julho, quando sofreu um AVC. Internado há dez dias no hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, morreu em decorrência de complicações provocadas por uma pneumonia.

Ele deixa a mulher, uma filha e duas netas.

Guiado pela vocação de ensinar, foi um dos maiores estimuladores do pensamento crítico no Brasil.

Nascido em 11 de janeiro de 1933, em Santos, cidade do litoral paulista, Oswaldo Porchat de Assis Pereira da Silva já tinha explícita, logo no início de sua adolescência, a sua vontade de ensinar e de transmitir conhecimentos.

Durante a adolescência, Porchat mergulhou no estudo do latim e dos principais pensadores religiosos, especialmente São Tomás de Aquino (1225-1274).

ªA experiência religiosa me proporcionou uma consciência firme e inabalável da finitude humana. O homem era pó que voltaria ao póº, escreveu ele anos mais tarde no ensaio ªPrefácio a uma Filosofiaº (1975). ªA meditação dos mistérios divinos proporcionou à minha razão uma lição contínua de humildade.º

No entanto, em dezembro de 1952, aos 19 anos, influenciado pela família, desistiu de ser professor e optou pela carreira de juiz. Prestou vestibular para a Faculdade de Direito da USP e foi aprovado.

Essa, porém, foi apenas uma traição passageira à sua vocação pelo magistério. Pouco depois, em fevereiro de 1953, já matriculado, duas semanas antes do início das aulas, o quase calouro de direito foi informado de que não haviam sido preenchidas as vagas do curso de letras clássicas. Ele presta o novo exame, é aprovado e começa a estudar na FFCL (Faculdade de Filosofia, Ciência e Letras da USP).

Cinco anos depois, uma outra mudança brusca de planos surgiu em sua vida em Paris. Faltava pouco menos de um mês para iniciar uma pós-graduação em grego e prosseguir em sua formação clássica. Formado em latim e professor concursado da rede estadual de ensino de São Paulo, Porchat estava cada vez mais interessado no estudo do grego, mas se inclinava de fato para a filosofia.

Era agosto de 1957. Ele estava em um jantar na casa de Victor Goldschmidt (1914-1981), um dos grandes historiadores da filosofia do século 20 e professor, na Universidade de Rennes (França), de seu amigo de adolescência José Arthur Giannotti. Sabendo por seu aluno da necessidade de orientação do amigo brasileiro, o mestre convidou os dois jovens para um jantar.

Ao compreender o interesse de Porchat pelo pensamento grego, o ilustre anfitrião mostrou a ele um texto de Platão e pediu que ele o traduzisse. Vendo a qualidade e a rapidez com que o jovem concluiu o trabalho, o professor disse a ele que tinha os contatos no governo francês para ajudá-lo a mudar sua bolsa de estudos.

Em poucos dias, após a concordância de seus orientadores na USP, Porchat desistiu de seu mestrado em grego em Paris e iniciou uma graduação em filosofia na Universidade de Rennes.

A partir dessa decisão, o jovem professor e eterno estudante começou a dar os passos cruciais que o levaram a se tornar não somente um dos mais notórios articuladores da expansão do ensino e da pesquisa da filosofia no Brasil mas também o principal expoente do ceticismo no país.

Diferentemente do sentido de pessimismo e de indiferença diante do mundo que a palavra "ceticismo" adquiriu para o senso comum, o pensamento questionador das "verdades" praticado por Porchat desmistifica os desmandos e exageros do que ele chamava de "delírios da razão". Trata-se de uma afirmação do exercício sadio da racionalidade e da exploração das possibilidades oferecidas pela vida.

FRANÇA

A escolha pela graduação em Rennes proporcionou ainda a Porchat a oportunidade de travar contato com Gaston-Gilles Granger, grande mestre de lógica e epistemologia (teoria do conhecimento).

O jovem latinista brasileiro não só fortaleceu sua formação em estudos dos pensadores clássicos, como Platão e Aristóteles, mas também se aprofundou no conhecimento dos métodos de análise das obras filosóficas.

Em 1959, após concluir o curso em Rennes, Porchat foi aceito como aluno residente de pós-graduação em filosofia na prestigiada ENS (Escola Normal Superior).

Ao final do último de seus quatro anos na França, Porchat conheceu em Paris uma jovem estudante de psicologia brasileira, Ieda. Os dois começam a namorar, percorrendo de motoneta as ruas e avenidas da cidade.

O namoro continuou, mas por correspondência, durante quase dois anos, pois o jovem fora nomeado para uma nova vaga no corpo docente da USP.

PROFESSOR

Ao retornar ao Brasil, Porchat conseguiu finalmente fincar o pé na carreira de professor. No dia 1ë de agosto de 1961, iniciou seu trabalho na USP como professor da disciplina história da filosofia antiga.

Apesar da intensa correspondência que mantinha com Ieda, o namorado não se decidia sobre o que fazer para os aproximar definitivamente. Diante da indefinição, a jovem retornou ao Brasil e o pediu em casamento. O namorado aceitou e ambos se casaram em junho de 1963.

Da união com Ieda nasceu Patrícia. A filha seguiu a carreira da mãe e hoje é professora de psicologia do campus de Bauru da Unesp (Universidade Estadual Paulista).

Em 1967, Porchat defendeu na USP sua tese de doutorado, "A Teoria Aristotélica da Ciência".

Nesse momento, com o país já sob o regime militar, Porchat já havia abandonado sua orientação política conservadora, decorrente de sua formação religiosa familiar. A mudança ocorreu por razões filosóficas.

"Minha fé religiosa se perdeu porque sobrepus a tudo o primado de minha razão crítica, como um imperativo de minha racionalidade. E lembra-me bem o dia em que, só comigo mesmo, me confessei ateu", escreveu ele em seu "Prefácio a uma Filosofia". "Minha mente percorria os espaços infinitos que nenhum Deus mais habitava."

Embora não estivesse em nenhuma organização política, ele não aceitava o autoritarismo vigente no país. Também não se permitiu ser influenciado pelo esquerdismo predominante no meio acadêmico e suas ramificações que chamou de "dogmatismos pretensamente filosóficos e, sobretudo, dogmatismos políticos".

"Isso sempre pareceu-me —e isso ainda hoje me parece— uma odiosa perfídia intelectual", afirmou no ensaio citado.

Em 1969, Porchat seguiu para a Universidade da Califórnia em Berkeley, nos Estados Unidos, para um pós-doutorado em lógica, sob a orientação de Benson Mates (1919-2009).

CONFLITOS

Depois Porchat voltou à USP com a proposta de fortalecer as áreas às quais se dedicara em Berkeley. Ingenuamente não se deu conta dos delírios ideológicos que teria de enfrentar —não só na recepção de sua proposta por alguns professores da filosofia e pela quase totalidade dos alunos mas pela própria FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas), a antiga FFCL.

No final de 1975, após esgotar sua paciência com a pecha indevida de simpatizante do imperialismo americano e chegar a um impasse com o departamento de filosofia, Porchat aceitou o convite de Zeferino Vaz (1908-1981), reitor na Unicamp, para pôr em prática sua proposta naquela nova instituição.

No ano seguinte, Porchat fundou na Unicamp o Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, conhecido pela sigla CLE, que se tornou o principal núcleo brasileiro de pesquisa e pós-graduação em filosofia da ciência.

Porchat se aposentou do CLE em 1985, mas manteve sua colaboração. Mais amadurecido nesses dez anos, o departamento de filosofia da USP o convidou para retornar, e ele aceitou. Em 2002, a FFLCH outorgou a ele o título de professor emérito. Em 2011, foi a vez de a Unicamp lhe conceder a mesma distinção.

DEBATES

Mesmo em meio a todas essas atividades, Porchat não abandonou a reflexão e os questionamentos de suas convicções e de suas dúvidas crescentes sobre a filosofia.

A partir de sua aula inaugural em 1968, que tomou forma no ensaio "O Conflito das Filosofias", seguiu-se um rico debate intelectual provocado pelas sutis contestações de seu amigo e colega Bento Prado Júnior (1937-2007).

Já em 1975, entre suas várias objeções relatadas no ensaio "A Filosofia e a Visão Comum do Mundo", Bento afirmou que a racionalidade e o questionamento radical de Porchat o levariam, inevitavelmente, a uma oscilação sem satisfação entre uma posição dogmática centrada na lógica e o ceticismo.

Os maiores beneficiários desse debate foram os próprios alunos e participantes dos generosos seminários de Porchat.

"Creio não ser exagerado dizer que, talvez pela primeira vez em nossa história, temos um genuíno, extenso e rigoroso debate filosófico", afirmou seu aluno Plínio Martins Smith, hoje professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), em um artigo em 2010 na revista "Cult".

VIDA COMUM

Após resistir durante quase duas décadas à ideia do ceticismo que se esboçava em seus ensaios, em 1986, depois de muitos debates, estudos e colaborações de seus alunos e colegas, Porchat estabeleceu as bases do pensamento que passou a chamar de neopirronismo.

O nome é uma referência ao filósofo grego Pirro de Élis (a.C. 365-275 a.C.), cujo pensamento foi preservado seis séculos depois pelos escritos de Sexto Empírico (160-210).

O neopirronismo não endossa as crenças dogmáticas da filosofia em geral nem as do senso comum. Ao não optar por certezas absolutas, suspende o juízo e escolhe viver a vida comum, buscando a imperturbabilidade da alma. Em vez de dar à razão dogmática o primado sobre a vida comum, o cético busca viver de modo aparentemente igual a todos os homens.

Para Aristóteles, a atitude filosófica exige a capacidade de admiração diante de tudo, inclusive das coisas mais banais. O olhar compenetrado e admirado em qualquer diálogo, com qualquer pessoa, sempre foi uma característica pessoal marcante de Porchat.

Sua atitude cotidiana nunca foi, no entanto, de passividade nem de indiferença diante do mundo.

Comunicativo e atuante, sempre conseguiu compatibilizar sua postura filosófica com a ação, voltada principalmente para a ampliação e a melhoria da qualidade do ensino e da pesquisa.

O pensamento de Porchat não só é compreensível para muitas pessoas não especializadas em filosofia como também faz sentido para a vida delas.

O jornalista MAURÍCIO TUFFANI é editor do site Direto da Ciência


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