Folha de S. Paulo


'Vazante', filme sobre a escravidão no Brasil, vira alvo de críticas

Divulgação
Cena de 'Vazante', filme de Daniela Thomas
Cena de 'Vazante', filme de Daniela Thomas

A diretora Daniela Thomas diz ter buscado em seu filme "Vazante" retratar a escravidão no Brasil sob o viés da "banalidade do mal". Sai de cena o capataz sádico, que povoa os longas americanos sobre o tema, e entram o que a cineasta chama de "dinâmicas sutis dessa violência cotidiana".

"[Nos filmes americanos] a escravidão parece ser questão de psicopatia individual. Queria sair dessa armadilha", diz Daniela. "No meu entender, é um sadismo de Estado."

A diretora não contava, porém, que o filme a botasse numa situação delicada, especialmente entre espectadores negros. "Vazante", que retrata a escravidão numa fazenda mineira em 1821 pelo olhar de Beatriz, garota branca de 12 anos, esteve no Festival de Brasília, em setembro, onde foi bombardeado de críticas.

No debate seguinte à exibição, questionou-se, principalmente, o fato de o filme retratar a maioria dos escravos como despidos de subjetividade, sem nome ou fala. Atribuiu-se ao trabalho um discurso que preservaria o status quo da opressão racial.

No público do debate, a atriz Mariana Nunes, que é negra, disse que o longa tem "final conformado" e indagou aos atores negros por que quiseram contar essa história.

Em texto na internet, Viviane Ferreira, presidente da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro, escreveu que a "existência da humanidade da pessoa negra" assombrou a diretora e foi tolhida de suas lentes.

"Foi horrível", diz Daniela Thomas sobre o que houve em Brasília. Questionada pelos participantes do debate se, após as ponderações dos espectadores, mudaria algo no filme, Daniela chegou a dizer que talvez não o filmasse –à Folha, ela diz que se arrepende da declaração.

"No meu país, onde eu achava que 'Vazante' ia ter uma boa acolhida nos movimentos progressistas, apanhei como se fosse o mais vil dos inimigos", diz.

No centro do debate emerge a ideia do lugar de fala, termo que povoa discussões sobre minorias. No caso, ela resvala no fato de Daniela Thomas ser uma diretora branca tratando de chaga nacional que ainda tem consequências sobre a população negra.

"Entendi, nesse debate/combate, que 'Vazante' não produziu a imagem que alguns grupos gostariam de ver. Lamentei profundamente. Seria incrível se na forma e no conteúdo eu tivesse acertado exatamente o tom que se espera."

O filme estreia no circuito em 9/11. Antes, passará na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, a partir da próxima semana.

Ricardo Teles/Divulgação
José Aparecido Ferreira e Sandra Corveloni em cena do filme 'Vazante
José Aparecido Ferreira e Sandra Corveloni em cena do filme 'Vazante'

DEBATE

O acalorado debate do filme em Brasília suscita uma série de questões que vão além do fato em si: a agenda social deve ser levada em conta na avaliação de uma obra? É possível separar a arte da política? Como retratar minorais e tragédias sociais?

Em Brasília, Daniela Thomas disse não ter feito um filme militante e nem ter tido intenção de fazer um retrato definitivo sobre a questão racial.

O crítico de cinema Juliano Gomes, da revista "Cinética", argumentou que invocar essa posição de neutralidade em 2017 é impossível. "Seu filme é político, sim, e está profundamente a serviço do status quo", contestou na ocasião.

À Folha ele, que é negro, diz não ter cobrado do longa um enredo militante, panfletário. "O problema é que a Daniela segue um padrão datado para descrever um episódio central da história do país. Os artistas brasileiros precisam se movimentar em direção a uma complexidade maior da representação dos negros. A sociedade pede essa reconfiguração."

Uma fala dele no debate, em especial, teve forte repercussão. Após Thomas manifestar dúvidas sobre a obra, tendo em vista os questionamentos feitos, ele sugeriu que a diretora não a lançasse.

"Foi uma frase irônica tirada de contexto", diz. "Jamais defenderia a censura. A frase foi uma reação ao fato de que ela parecia lamentar a existência do próprio trabalho. Optou por não expor seus motivos. Confesso que isso me surpreendeu demais."

Em Brasília, dividindo o palco com a equipe de "Vazante", também estava a cineasta paulistana Jéssica Queiroz. Ela apresentava seu terceiro curta, "Peripatético", sobre jovens negros da periferia de São Paulo. O filme ganhou o troféu de melhor roteiro e um prêmio especial do júri.

"Não achei que o debate tenha sido violento, rancoroso, como disseram. Foi acalorado, sim, mas com apontamentos pertinentes sobre o filme", comenta. "Talvez as pessoas não estejam acostumadas a tratar de questões raciais num ambiente como aquele."

Ela também se sentiu incomodada com o retrato pintado em "Vazante".

"Os personagens negros não são individualizados. São um objeto em cena, uma grande massa negra escravizada."

"Não acredito que a arte possa ser separada da visão política. Principalmente no momento em que vivemos", avalia. "A arte precisa dizer alguma coisa, ter a ambição de mudar a realidade. Como produtora negra, da periferia, não posso fugir disso."

Não apenas os espectadores negros (artistas, críticos e militantes) fizeram sérias ressalvas ao filme.

Coube a um branco, o cineasta Chico Santos, integrante do Coletivo Bodoque, o primeiro questionamento sobre a questão racial no debate.

"O filme é sobre a tragédia de uma personagem branca, cercada de personagens negras com subjetividades capengas no âmbito da representação - lamentavelmente aquele padrão "empregada negra de novela" que a gente já conhece", argumenta. "Direcionei a primeira pergunta aos atores negros do elenco. Quis saber qual abertura tiveram para interferir na obra e propor diante desta situação. Vemos que as pessoas negras não foram ouvidas antes, durante e nem mesmo depois da feitura do filme."

Ele, que apresentou no festival o curta "Estamos Todos Aqui", também avalia como positivo o saldo da discussão.

"Houve uma tensão que considero extremamente saudável. Seria estranho se a população negra continuasse muda. Muitas vezes não estamos acostumados a ouvir vozes que sempre estiveram historicamente caladas. Ninguém está totalmente isento disso. Para nós do Coletivo Bodoque, esse foi o susto de Daniela."

A produtora cultural Valeska Silva não viu o filme nem esteve no debate, mas encontrou no episódio mais um exemplo a reforçar sua argumentação no artigo "Há espaço no cinema brasileiro para os filmes?", publicado no site do jornal "O Estado de S.Paulo" no começo do mês.

Em sua visão, os debates ocupariam o papel central nos festivais, e os filmes seriam cada vez mais coadjuvantes. O discurso político passaria a nortear a avaliação dos longas.

"O simples ato de mostrar pode soar criminoso se não for dada a voz aos grupos que sofreram injustiças históricas", escreveu a produtora, que é branca.

"As discussões são muito pautadas pelo ativismo", afirma à Folha. "Há uma certa instrumentalização do cinema, como se o papel dos filmes fosse enviar alguma mensagem."

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VAZANTE
DIREÇÃO Daniela Thomas
ELENCO Adriano Carvalho, Luana Tito Nastas, Jai Baptista
PRODUÇÃO Brasil, 2017
QUANDO estreia em 9/11


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