Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Silêncio da indústria reforça medo de denunciar, diz Lena Dunham

Angela Weiss/AFP
A atriz e escritora Lena Dunham no Festival de Cinema de Tribeca em Nova York em abril deste ano
A atriz e escritora Lena Dunham no Festival de Cinema de Tribeca em Nova York em abril deste ano

Cheguei a Hollywood quando tinha 23 anos de idade. Tinha feito um filme de baixo orçamento, ganhado o prêmio de um festival prestigiado, emplacado um empresário e conseguido um contrato com a TV em questão de seis meses.

Foi um conto de fadas que a grande maioria das pessoas nunca vai conhecer e eu sabia, só como alguém que tem 23 anos sabe, que estava fechando um negócio excepcional. Ia de uma reunião para a outra com a alegria da Cinderela no baile.

Esses encontros, quase sempre com homens, eram pontuados por atos de sexismo diário —a suposição de que eu fosse querer fazer pequenos filmes "íntimos", a sugestão de que escrevia comédia "de um jeito em que todas as mulheres ficavam na TPM juntas e enlouqueciam durante uma semana", a insistência de que eu ficaria "superengraçada fazendo par com uma gostosona".

Houve jantares que se estenderam demais, almoços que se transformaram em confissões sobre a situação deplorável do casamento do executivo em questão e a insistência constante de que eu deveria, como meu trabalho sugere, estar "disposta a tudo na cama".

Tirei tudo de letra, despejando as injustiças do dia no sofá da minha amiga nova (e hoje sócia), Jenni Konner. Ela me contou as histórias mais absurdas da própria ascensão e criávamos um mundo novo para nós: imaginávamos um set administrado por mulheres, homens que nem sonhariam com atrevimentos ou sugestões de salários desiguais, uma companhia onde se visse mulheres até onde a vista alcançasse, a oportunidade de escrever roteiros que mudassem a percepção das pessoas sobre a identidade feminina.

Diríamos a qualquer homem que achasse que estava recebendo um convite para transar que fosse pentear macaco. Aqueles com quem trabalhamos —como Judd Apatow, o cara menos sacana de Hollywood— nos mostraram/trataram com todo o respeito do mundo.

O único ataque assustador de que fui vítima, aliás, foi "cometido" por um gay que queria de volta a bolsa que comprara para mim. Conseguimos realizar tudo aquilo com que sonháramos e muito mais.

Na semana passada começaram a pipocar notícias de que Harvey Weinstein tinha assediado sexualmente inúmeras mulheres, durante vários anos, deixando bem claro que nem toda mulher tinha tido a sorte de trilhar o nosso caminho em Hollywood. Violência, ameaça e coerção são a norma para muitas que tentam fazer negócios ou arte.

Weinstein pode ser o homem mais poderoso do setor a ser revelado como predador, mas certamente não é o único a achar que tem liberdade de fazer o que bem entender. Seu comportamento, silenciosamente corroborado por empregados e colaboradores durante décadas, representa um microcosmo do que vem acontecendo em Hollywood desde sempre e de como é o assédio a que as mulheres estão sujeitas em todo lugar.

O uso do poder para possuir e silenciar as mulheres tem as mesmas chances de acontecer em uma lanchonete e em um set de cinema, e agora Hollywood tem outra chance de fazer barulho, definindo o que devemos ou não aceitar enquanto sociedade.

Setor com tendência liberal, fomos rápidos ao condenar Bill O'Reilly, Roger Ailes e, claro, o presidente; não aceitamos abuso sexual como "conversa de vestiário" —mas então por que o silêncio ensurdecedor, principalmente dos homens que dele fazem parte, quando um de vocês é descoberto como tendo o prazer horroroso de humilhar e traumatizar mulheres?

Não há nada de novo aí. Woody Allen, cuja filha reafirmou, acima de suas negativas, ter sido abusada por ele quando criança, continua atraindo as estrelas mais badaladas para seus trabalhos; Roman Polanski, cujas vítimas continuam se manifestando, é considerado um visionário cuja obra vale ser defendida, e, recentemente, um ator famosinho me disse que trabalhar com ele seria "obviamente o máximo". (De fato, o próprio Weinstein reuniu Hollywood para assinar uma carta pedindo que as acusações contra Polanksi fossem retiradas para que ele pudesse retornar aos EUA.)

Além desses casos envolvendo peixes grandes, ignorar o mau comportamento continua sendo a marca registrada dos homens em Hollywood. Ouço histórias das próprias vítimas com uma frequência indubitavelmente distópica.

No ano passado, sofri abuso sexual pelo diretor de uma série de TV —não foi a minha, e foi fora do set— e a reação dos poderosos foi defendê-lo, questionando a "ferocidade" feminina e levando uma eternidade para despedi-lo.

Foi uma atitude baseada menos em sua capacidade do que em algum tipo de lealdade ancestral. É o tipo de comportamento que normaliza esse abuso de poder.

As acusações contra Weinstein são tão explicitamente definidas e tão rematadamente horrorosas que parecia impossível refutá-las ou ignorá-las. Ingênua, eu esperava que a reticência mostrada pelos homens poderosos de Hollywood, a recusa coletiva em tomar partido em narrativas do tipo diz que me diz, seriam demolidas face à revelação definitiva desse segredo.

O motivo por que me restrinjo aos homens é o fato de eles serem os que têm menos a perder e o maior poder para mudar a narrativa, certamente não tendo que lidar com o mesmo nível de trauma —pessoal e coletivo— que as mulheres por causa dessas alegações; mas aqui estamos, vários dias depois, esperando que os parceiros mais poderosos de Weinstein digam alguma coisa. Qualquer coisa. Não só seria uma dádiva às vítimas, como também uma mensagem àquelas que acompanham o nosso setor de perto.

Elas precisam de algo que mostre que não aprovamos o abuso de poder e o ódio às mulheres que é a motivação por trás desse tipo de comportamento.

No final de 2016, participei de um evento beneficente para Hillary Clinton organizado pela Weinstein Company. Já tinha ouvido os boatos e achava que subir ao palco em nome de sua empresa era uma traição aos meus valores —mas eu queria tão desesperadamente apoiar minha candidata que resolvi arriscar.

Todo mundo já fez isso e se desculpar pelo fato não é ato de covardia, mas sim uma mudança crucial de posição que pode alterar tanto o nosso comportamento nos negócios como a visão que a mulher tem de sua posição no mercado de trabalho. Eu me arrependo de ter apertado a mão de alguém que sabia não ser amigo das mulheres do meu ramo.

Homens de Hollywood, do que vocês se arrependem? O que vocês se recusam a continuar aceitando? O que dirão para preencher o vazio e mudar o padrão? Estão com medo porque ouviram os boatos, mas aceitaram um papel, uma posição em um comitê de honra, um copo de champanhe e um tapinha nas costas?

Estão com vergonha porque aparecem em alguma foto com ele, sorrisão largo? Porque ele deu dinheiro para a organização de vocês? Ou os apresentou às suas respectivas namoradas? Ou é por causa daquela indicação ao Oscar? Vocês estão agindo na base da velha premissa de que a coisa toda é muito triste, mas não é problema seu?

Infelizmente, é sim. De todos nós. É problema dos agentes que mandavam as clientes para se encontrar com um homem que sabiam ser um predador e que as acolhia no set de seus filmes. É problema dos produtores que fingiram não ver o que acontecia.

É problema dos atores que ouviram os boatos, mas voltavam para seus trailers para jogar fantasy football. É problema da imprensa que cobre o setor e não denunciou o que descobrira por medo de não estar mais nas boas graças de Harvey Weinstein.

Não é, como alguns sugeriram, problema das mulheres que têm medo de denunciá-lo ou fazer acordo indenizatório.

O silêncio de Hollywood, principalmente dos homens que trabalhavam lado a lado com Weinstein, só reforça a cultura que impede a mulher de denunciar.

Quando permanecemos em silêncio, amordaçamos as vítimas. Quando nos calamos, toleramos um comportamento que nenhum de nós poderia achar normal (a menos que seja o seu). Quando nos omitimos, continuamos no mesmo caminho que nos trouxe até aqui.

Fazer barulho é promover mudança. Promover mudança é a razão pela qual contamos histórias. E não queremos que elas continuem se repetindo. Botem a boca no trombone.

Lena Dunham é roteirista e diretora


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