Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Milan Kundera acusa 'traição' de críticos, biógrafos e tradutores

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O escritor Milan Kundera acusa 'traição' de críticos
O escritor Milan Kundera acusa 'traição' de críticos

OS TESTAMENTOS TRAÍDOS (ótimo)
AUTOR Milan Kundera
TRADUÇÃO Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca e Maria Luíza Newlands
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 54,90 (296 págs.)

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Os textos de "Os Testamentos Traídos", de Milan Kundera, estruturam-se de forma musical. Distribuídos em nove partes ou movimentos que se cruzam, podem ser lidos como capítulos móveis de um conjunto harmônico, em que temas e autores vêm e vão, em diálogo e contraponto.

O livro vem arejar, com suas ideias antidogmáticas sobre literatura, música e outras artes, este momento de intolerância e obscurantismo que tem ameaçado o livre exercício do pensamento e da criação no país.

Numa retomada de temas já presentes em "A Arte do Romance", seu primeiro livro ensaístico, o escritor tcheco-francês percorre os três tempos da história do romance europeu.

Ele parte de Rabelais e Cervantes, que adotaram como princípios a liberdade e a improvisação, para percorrer vários autores do século 20, como Kafka, Hermann Broch, Hermingway, Musil, Salmon Rushdie, García Márquez e Carlos Fuentes, que aliaram o rigor construtivo do romance do século 19 aos improvisos inebriantes dos primeiros romancistas europeus.

A essa incursão no desenvolvimento do romance, Kundera articula os três tempos da história da música europeia a partir do século 17 e, entre reflexões sobre vários compositores, detém-se na "extraordinária encruzilhada de tendências históricas" de Bach e Stravinsky.

Além disso, evoca Nietzsche, Fellini, Octavio Paz e alguns nomes do jazz, discorre sobre o humor "nascido da certeza de que não há certeza", investiga as relações paradoxais entre romance e história, entra na vida dos escritores emigrados e defende a necessária conjunção entre a apreensão da realidade e a entrega aos poderes da fantasia.

O alvo crítico de Kundera, no livro, são os biógrafos, críticos e tradutores que, por critérios morais e ideológicos ou por preconceitos estéticos, "traíram" os escritores e artistas de que se ocuparam.

O primeiro é Max Brod, que, ao criar uma imagem de Kafka, não apenas contribuiu para o surgimento da "kafkologia", centrada em aspectos extraliterários da obra kafkiana, como também transformou a biografia do escritor em uma hagiografia.

Os Testamentos Traídos - Ensaios
Milan Kundera
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Adorno também entra no rol, por ter ignorado a força estética dos ritos bárbaros de "A Sagração da Primavera" e ter preferido colocar Stravinsky ao lado da barbárie. Assim como entram os intelectuais que, mais preocupados com o espetáculo da perseguição a Salmon Rushdie, menosprezaram a importância literária de "Os Versos Satânicos", contribuindo para o "estado de desgraça" do romancista.

A esses se somam ainda os tradutores de Kafka que, alheios ao valor estético da repetição na obra do escritor, substituíram as palavras repetidas por sinônimos, em nome do "bom estilo".

Assim, com vigor crítico, Kundera oferece aos seus leitores uma lição não apenas sobre os movimentos da arte do romance ao longo dos tempos, mas também sobre a consistente leveza da arte do ensaio.


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