Folha de S. Paulo


Romance de China Mièville retrata caos político da Revolução Russa

Andrew Testa/The New York Times
O escritor China Mieville posa para foto em sua casa, em Londres, na Inglaterra
O escritor China Mieville posa para foto em sua casa, em Londres, na Inglaterra

China Miéville, um dos raros escritores de fantasia a retratar massas de proletários oprimidos e rebeldes no centro da ação de seus romances, decidiu produzir seu próprio relato sobre a mais controversa das revoltas populares do mundo real, a Revolução Russa.

"Eu e meu editor fizemos uma espécie de aposta", contou o britânico Miéville à Folha, por telefone.

"Não sou historiador, jamais fingi ser um. Aliás, não falo uma palavra de russo, embora tenha visitado a Rússia quando trabalhava no livro", ele diz.

E segue: "Mas acreditamos que a técnica do romance, que permite que você conte o que aconteceu pensando naquilo em primeiro lugar como uma boa história, é a melhor introdução possível ao tema para quem não sabe quase nada sobre ele".

O resultado dessa aposta é "Outubro: História da Revolução Russa", livro que está chegando ao Brasil.

A perspectiva adotada por Miéville é assumidamente a da tradição política da esquerda, mas os aspectos épicos da narrativa não são usados para ocultar a confusão, as brigas intestinas e o horror stalinista que se seguem aos primeiros anos aparentemente esperançosos do novo regime.

Miéville diz que ficou satisfeito ao perceber que mesmo historiadores com orientação política muito diferente da dele, como a australiana Sheila Fitzpatrick, da Universidade de Sydney, entenderam o objetivo do livro.

"Na resenha que fez para o 'London Review of Books', ela disse que eu tinha feito minha lição de casa, que o livro tinha uma estrutura elegante e era inesperadamente comovente. Para mim, está bom demais."

BAGUNÇA ESPERADA

Uma coisa, porém, nem a manha novelística de Miéville é capaz de eliminar: o caos político e institucional da Rússia pré e pós-revolucionária.

Frases como "a ala direita dos bolcheviques" ou "a facção pacifista dos mencheviques" às vezes parecem se multiplicar feito coelhos pelas páginas –e personagens importantes não raro trafegam por diversas dessas agremiações efêmeras.

"Concordo que parece confuso, mas o que nós muitas vezes esquecemos, e é algo que fica muito claro para mim na minha experiência como ativista político, é que essas posições na verdade mudam o tempo todo", argumenta o escritor.

"Quando alguém começa a dizer coisas do tipo 'os mencheviques defendiam isso' ou 'os bolcheviques eram a favor de tal coisa', o certo é sempre fazer duas perguntas: quais mencheviques e bolcheviques? E quando? Basta você pensar em quantas vezes o PT mudou de orientação política ao longo das últimas décadas –e, meu bom Deus, vocês aí no Brasil sabem melhor do que eu o quanto isso aconteceu– para saber como essas coisas podem ser fluidas."

De formação acadêmica marxista, Miéville reconhece a importância das estruturas e das forças históricas de longo prazo em rupturas como a Revolução Russa, mas diz não enxergar oposição entre essas forças e o papel dos indivíduos na história humana.

"Digo isto com alguma hesitação, mas parece que há momentos da história que são particularmente mutantes, camaleônicos, quando as coisas estão acontecendo com uma velocidade mais alta que a normal –e, nesses casos, a ação de indivíduos talvez possa ter um efeito especialmente dramático."

Ele acrescenta que "Trótski, que era marxista até a medula, admite isso quando diz que, se Lênin não estivesse em São Petersburgo em outubro de 1917, a mudança de regime não teria ocorrido –o que não significa que Lênin fez a Revolução Russa sozinho, óbvio."

Aos que enxergam o movimento revolucionário de 1917 como o criador de um dos maiores becos sem saída da história, Miéville responde com um misto de convite ao diálogo e desafio.

"É perfeitamente verdade que as ideias da esquerda estão na defensiva no mundo todo já faz algum tempo. Agora, não dá para simplesmente assumir que elas se tornaram obsoletas por natureza só porque muita gente parece ter sido hipnotizada por uma versão vulgar do que Adam Smith pregava no século 18. Acho ótimo que tenhamos um debate sobre a validade das ideias de esquerda, mas que seja um debate decente."

Sem esse tipo de discussão, defende o escritor, o ambiente político tem se envenenado cada vez mais.

Outubro - História da Revolução Russa
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"No meu tempo de vida, nunca houve uma época melhor para ser um fascista do que hoje. Por isso faz sentido recuperar as ideias libertadoras radicais –no mínimo, é melhor do que engolir essa bagunça feiosa e decadente na qual estamos chafurdando agora."

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OUTUBRO: HISTÓRIA DA REVOLUÇÃO RUSSA
AUTOR China Mièville
TRADUTORA Heci Regina Candiani
EDITORA Boitempo
QUANTO R$ 59 (384 págs.)


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