Folha de S. Paulo


Crítica

Com 'Aqui', Richard McGuire inventa a máquina do tempo

Reprodução
Página do quadrinho 'Aqui' (2014), de Richard McGuire
Página do quadrinho "Aqui", de Richard McGuire

Aqui (muito bom)
AUTOR Richard McGuire
TRADUÇÃO Erico Assis
EDITORA Quadrinhos na Cia.
QUANTO R$ 79,90 (304 págs.)

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A forma mais honesta de traduzir o resultado dos 25 anos de trabalho de Richard McGuire em "Aqui" para o leitor que ainda não o conhece é afirmar que o autor inventou a máquina do tempo.

"Aqui" segue a trajetória não linear do canto da sala de uma casa ao longo de bilhões de anos, desde o instante em que o local onde a casa foi construída não passava de um pântano até 22 mil anos no futuro a partir de agora.

De roldão, sabemos (ou intuímos) o que se passa com os seres ao seu redor, de dinossauros extintos a indígenas americanos semiextintos, dos colonizadores ingleses à história de uma família, até chegar o porvir no qual a compreensão do ambiente só se dá por meio dos hologramas de um museu interativo.

O "nouveau roman" de Alain Robbe-Grillet tinha entre suas premissas a possibilidade de narrar sob a perspectiva de objetos, usando da descrição maníaca. O objetivismo dos franceses buscava o descolamento da psicologia dos personagens, uma espécie de marco zero sentimental. Algo semelhante é obtido por McGuire em "Aqui", pois, à medida que a vida passa, apenas o silêncio -abissal- permanece.

O silêncio, precisamente, é o tema que perpassa a justaposição de textos e imagens de "Aqui", em chave mais poderosa que em Robe-Grillet.

A capacidade enternecedora desses fragmentos -a primeira visita de um filho bastardo ao pai na América dos peregrinos, o jogo erótico de um casal moicano, a morte do avô da família que habita o casarão- é intensa.

Igualmente, não é de agora que sabemos que a ficção é também uma variação coletiva do sonho. O surrealismo nos ensinou isso, algo que a física atual corrobora: o tempo não existe, e passado e presente coexistem em contiguidade, a mesma existente entre o canto da sala e a lareira da máquina do tempo criada por Richard McGuire.

Em algum lugar do futuro, "Aqui" será usada para ensinar que a cronologia não passa de uma ficção ditada pelo sentimento.

JOCA REINERS TERRON é escritor, autor de "Noite Dentro da Noite" (Companhia das Letras)


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