Folha de S. Paulo


Análise

Recorte pós-stalinista exalta o cinema como arma revolucionária

Divulgação
Donatas Banionis e Natalya Bondarchuk no filme
Donatas Banionis e Natalya Bondarchuk no filme "Solaris" (1972), de Andrei Tarkóvski

"De todas as artes, o cinema é, para nós, a mais importante", decretou Lênin no início dos anos 1920. O líder bolchevique reconhecia, assim, os filmes como arma revolucionária numa sociedade majoritariamente analfabeta.

A mostra "100 Anos da Revolução Russa" reúne sete filmes que revelam como o regime soviético interpretou a fórmula. Infelizmente, a seleção deixou de fora os anos 1920, quando as vanguardas demonstraram que não haveria revolução sem a transformação das formas de expressar e compreender.

A mostra cobre somente o período a partir de 1937, posterior à entrada em vigor do "realismo socialista".

Esse conjunto de regras impostas pelo stalinismo obrigou as obras literárias, musicais, plásticas e cinematográficas a adotar padrões de compromisso ideológico, a descartar linguagens consideradas difíceis e a representar heróis positivos.

"Lênin em Outubro" (1937) celebra os 20 anos da Revolução com a recriação do retorno do líder bolchevique à Rússia e dos eventos que culminam na derrubada do czarismo.

Lênin é um clandestino, ninguém sabe a aparência que ele tem e, fingindo também não saber, o líder intensifica o mito.

Assim, Mikhail Romm executa a encomenda sem esquecer que o cinema é, acima de tudo, produção de imaginários, que o Lênin que se vê na tela é também uma ficção adequada à situação.

"Tratoristas" (1938), dirigido por Ivan Pyryev, reproduz todos os estereótipos do realismo socialista, com a dedicação ao trabalho e a defesa da pátria como lemas centrais.

Em meio a discursos enfadonhos, Pyryev abre espaços para cenas musicais que, em mais de um momento, tornam o filme semelhante às bolhas de artifício que Hollywood fabricava na mesma época.

Mesmo que "Alexandre Nevski" (1938) cumpra ordens oficiais, Eisenstein aproveita a brecha para avançar sua pesquisa revolucionária das formas.

Nela, o cineasta integra imagens, sons e a música de Prokofiev em composições que até hoje reencontramos nas batalhas que Peter Jackson e Zack Snyder adoram recriar.

Outros filmes refletem períodos distintos, como a era Brejnev (1964-1982) e o pós-comunismo.

A primeira, marcada pela valorização do progresso técnico e industrial em detrimento dos direitos humanos, teve em Tarkóvski um de seus artistas mais incômodos.

Em "Solaris" (1971), o diretor segue a senda do "2001" de Kubrick para expandir os limites da ficção científica no cinema, subvertendo o triunfo da tecnologia com imagens vindas de outros mundos.

Também do período gelado de Brejnev, a mostra oferece o impacto da breve obra de Larisa Shepitko.

"A Ascensão" (1977), último trabalho da diretora, que morreu dois anos mais tarde num acidente, é, ao mesmo tempo, filme físico de sobrevivência, alegoria religiosa e reflexão sobre o homem diante do medo.


Endereço da página:

Links no texto: