Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Até em Las Vegas The Who se mostra à prova de decadência

William Snyder/Divulgação
A banda The Who faz show que integra o São Paulo Trip nesta quinta (21)
A banda The Who faz show que integra o São Paulo Trip nesta quinta (21)

THE WHO (ótimo)

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Las Vegas é um cemitério de néon e roletas ao qual os artistas vão para confirmar sua inevitável irrelevância e faturar uns belos trocos.

Mas, como fazia com instrumentos no início da carreira, o The Who quebrou esse paradigma em seis noites no The Colosseum, casa de shows do hotel Caesars Palace.

Antes de a apresentação começar, curiosidades sobre o grupo liderado pelo guitarrista Pete Townshend e o vocalista Roger Daltrey –únicos remanescentes da formação original– são projetadas nos telões, como se a avisar aos 2.000 presentes de que a história do rock os atingiria em cheio em poucos minutos.

Pela primeira vez uma banda de rock pisaria no espaço, inaugurado em 2003. Mas, se o palco não é dos mais rebeldes, tampouco é o rock de hoje, não? Eis algo que Daltrey, Towshend e sua trupe de seis músicos, que inclui Zak Starkey, filho de Ringo Starr, na bateria, quer contestar.

Começam sua última noite no deserto com "Who Are You", um cartão de visitas de luxo. Sem necessidade. A maior parte do público ali está em torno do 70 anos de idade e já conhecia o hino antes de se tornar, para os mais novos, "o tema de 'C.S.I.'".

A reeducação deve ser útil quando o The Who tocar pela primeira vez no Brasil nesta quinta (21), no festival São Paulo Trip, antes de seguir para o Rio e Porto Alegre: é o último pilar do rock em atividade a chegar ao país.

A experiência pode similar à propiciada pelas passagens de Neil Young e Bruce Springsteen em outros Rock In Rio, quando os fãs de pop, depois de tê-los ignorado, começaram a se reagrupar na frente do palco, pensando: "Caramba, eu conheço essa música. E essa também".

É assim com "The Seeker", "The Kids Are Alright" e "I Can See For Miles", tocadas antes de "My Generation", quando finalmente percebe mos estar diante de dois músicos que fazem qualquer hipérbole soar deslocada.

Townshend, aos 72, parece um garoto, com seus famosos pulinhos e as palhetadas grandiosas, o braço girando. "I hope I die before I get old" ("Espero morrer antes de envelhecer") canta Daltrey, 73, com sua voz rasgada. Um dia chocante, hoje a letra soa irônica e ainda energética.

O show contempla todas as principais fases do grupo, com hinos se revezando de noite em noite –no Brasil, a ocasião inédita deve promover maior profusão de hits.

"You Better You Bet", um dos últimos grandes sucessos do grupo, levanta o Colosseum e abre para o momento mais emocionante da noite, quando a banda emenda quatro faixas da ópera-rock "Quadrophenia": "The Punk and the Godfather", "Drowned", "I'm One" e "Love, Reign O'er Me", que só não arranca lágrimas se você for um zumbi sem coração.

Daltrey e Townshend abraçam a nostalgia de queixo erguido e desafiam o tempo. Eles se comunicam com o público o tempo inteiro, contando anedotas, causos sobre o início da carreira e o drama para chegarem a Las Vegas durante a única tempestade a cair em meses no local.

A dupla pede desculpas à família pela vida na estrada e até reclama do público ("Vocês podem se calar? Céline Dion no avisou sobre isso", brinca o guitarrista).

As duas horas voam, e "Baba O'Riley" e "Won't Get Fooled Again", dois dos maiores singles da banda, encerram a noite.

"Não acho que faremos isso de novo", diz Townshend sobre a experiência. Compreende-se. A decadência de Las Vegas não combina com o rock do The Who.


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