Folha de S. Paulo


Disco 'Coisas', de Moacir Santos, ganha sotaque baiano em show em SP

Divulgação
A Orkestra Rumpilezz apresenta uma releitura do álbum 'Coisas' (1965), de Moacir Santos
A Orkestra Rumpilezz apresenta uma releitura do álbum 'Coisas' (1965), de Moacir Santos

Um encontro que há muito se esperava acontece nestes sábado (16) e domingo no Sesc Pinheiros: o disco "Coisas", de Moacir Santos (1926-2006), e a Orkestra Rumpilezz, do saxofonista e maestro Letieres Leite.

"Não existe uma orquestra melhor para reler 'Coisas'. São grandes criatividades se encontrando", atesta a flautista e pesquisadora Andrea Ernest Dias, autora do livro "Moacir Santos ou Os Caminhos de um Músico Brasileiro".

Batizadas de "Coisa nº 1", "Coisa nº 2" etc., as dez faixas do disco de 1965 sintetizam a busca de Moacir, como compositor e arranjador, por uma sonoridade original.

Embora próximo do samba-jazz, em voga na época, o repertório é diferente de tudo o que se ouvira até então.

Ainda hoje, o casamento entre sopros e referências afro-brasileiras espanta e influencia músicos de várias partes do mundo.

O conjunto reunido para o LP da pequena e corajosa gravadora Forma também tinha piano, violão, guitarra, baixo. A Rumpilezz só tem instrumentos de sopro e percussão, distribuídos por 20 homens.

Criada em 2006 e tendo lançado seu primeiro CD em 2009, a orquestra baiana está entre o que de mais importante surgiu na música brasileira neste século.

No Prêmio da Música Brasileira, em julho passado, Letieres Leite e a Rumpilezz levaram três prêmios na categoria instrumental: álbum ("A Saga da Travessia"), arranjador e grupo.

"Em 'Coisas' há um diálogo categórico entre sopros e percussão, algo profundo e único", destaca Letieres. "É um dos meus maiores desafios como arranjador. Trabalhei com as obras de [Gilberto] Gil e [Dorival] Caymmi, e não foi fácil. Moacir é mais difícil porque já é instrumental, já é da nossa turma."

REDESCOBERTA

Maestro de formação sólida no Brasil e no exterior (viveu dez anos na Europa), Letieres Leite tem como missão recriar o que parece perfeito. Ninguém fez isso até hoje com os dez temas.

Mas a redescoberta de "Coisas" –e sua consequente consagração como um grande acontecimento da música brasileira– só ocorreu graças ao empenho do violonista Mario Adnet e do saxofonista Zé Nogueira.

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Sem contar com as partituras originais –que eram dadas como perdidas, embora hoje exista a esperança de que não estejam–, eles usaram os ouvidos para reconstituir os arranjos tais quais foram escritos.

O resultado foi o projeto "Ouro Negro", de 2001: CD duplo, livro de partituras, orquestra homônima.

Os mesmos Adnet e Nogueira cuidaram em 2004 do lançamento em CD de "Coisas" –além de produzirem outros trabalhos relacionados à obra de Moacir.

"Ninguém vai fazer melhor do que o Moacir, que construiu a máquina. Mas é possível fazer outras coisas", diz Adnet. "Só que, para mexer, precisa ter educação musical, servir a um propósito, manter o nível. Não vai mexer para piorar a obra. Isso o Letieres não vai fazer, é claro."

Adnet ressalta a importância, para a propagação das composições de Moacir, de iniciativas como a do trompetista Wynton Marsalis, que as levou para serem rearranjadas e tocadas em Nova York. Mas o sotaque brasileiro se perdeu.

Acervo Moacir Santos
Moacir Santos (centro) com sua big band formada em Los Angeles. Crédito: Acervo Moacir Santos ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
Moacir Santos (centro) com sua big band formada em Los Angeles

Com a Rumpilezz, deve ser reforçado o sotaque, especialmente o baiano. Letieres tem sistematizado suas pesquisas no método que batizou de UPB (Universo Percussivo Baiano).

Claves e toques são como ele classifica os elementos que integram esse universo. As matérias-primas vêm das manifestações afro-brasileiras, sobretudo do candomblé.

Ele identifica toques dos terreiros de umbanda do Rio de Janeiro na estrutura rítmica das "Coisas".

Fazem parte da cultura banto, assim como o maracatu e outras tradições de Pernambuco –onde, na região do sertão, nasceu Moacir. Na Bahia, os cultos jejes e nagôs predominam.

"Quando se troca o DNA, é preciso que o arranjo seja correspondente. Busquei toques semelhantes. Vamos convidar o maestro para dar um passeio em Salvador", brinca Letieres.

PESQUISADOR

Depois de passar por várias cidades nordestinas, Moacir se firmou no Rio na década de 1950. Foi arranjador da Rádio Nacional, deu aulas para muita gente (Baden Powell, Paulo Moura etc.) e recebeu aulas de mestres como Hans-Joachim Koellreuter e Guerra-Peixe.

Para Andrea Ernest Dias, a curiosidade de pesquisador pode ter sido inoculada nele por Guerra-Peixe.

Moacir sofreu influência da Orquestra Afro-Brasileira, de Abigail Moura, pois a conheceu na época em que estava compondo "Coisas".

O compositor viveu próximo a um terreiro, no Engenho Novo (Zona Norte do Rio), mas nunca foi um estudioso dos orixás. Tornou-se seguidor da teosofia.

"Era um estudioso da sonoridade. Pesquisava para usar na sua linha de composição e de orquestração. Seu objetivo sempre foi a música", diz ela.

Após diversos trabalhos como orquestrador e compositor (sendo parceiro de Vinicius de Moraes, por exemplo), Moacir se mudou em 1967 para os Estados Unidos.

Participou de trilhas de cinema, gravou quatro discos e se radicou em Pasadena, na Califórnia, onde morreu aos 80 anos.

INTUIÇÃO

Chamado para o projeto pelo jornalista e DJ Ramiro Zwetsch e pelo DJ Paulão, Letieres escreveu as harmonias escutando um LP de "Coisas". Apenas depois conferiu as partituras.

Teve coragem de mexer numa melodia, exatamente a mais conhecida: "Nanã", que é como "Coisa nº 5" passou a ser chamada após ganhar letra de Mário Telles –e interpretações de Nara Leão, Wilson Simonal e muitos outros.

"Eu ouvia a música em 5 [compasso 5/4] e resolvi fazer o arranjo assim. Depois me dei conta de que era a 'Coisa nº 5'. Acredito muito na intuição", diz.

Ele só deve tocar oito das dez músicas nos shows, pois é o seu número. Oito são as letras do seu nome e de Salvador, e oito é o número de filhos que seus pais tiveram.

"Sinto que o Moacir está ao lado da gente" confia Letiees. "A música dele faz o mundo ficar mais feliz."

*

ORKESTRA RUMPILEZZ INTERPRETA 'COISAS'
QUANDO sáb (16), às 21h; dom., às 18h
ONDE Sesc Pinheiros - Teatro Paulo Autran, R. Paes Leme, 195, (11) 3095-9400
QUANTO: de R$ 18 a R$ 60


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