Folha de S. Paulo


Crítica

Documentos mostram Lobato nem tão mau e Lima nem tão bonzinho

Reprodução
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), escritor brasileiro nascido no Rio de Janeiro. Foto: Reproducao ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
(articleGraphicCaption).O escritor Lima Barreto (1881-1922) se correspondeu com Monteiro Lobato entre 1918 e 1922

Nada melhor do que o confronto direto com as fontes para corrigir as distorções de ambas as caricaturas: a do Lima bonzinho; a do Lobato lobo mau

Homenageado da recentemente encerrada Festa Literária Internacional de Paraty, Lima Barreto vem sendo alçado ao status de patrono das minorias oprimidas -uma espécie de padroeiro do politicamente correto em cuja sombra todas as boas causas encontram refrigério.

A homenagem é justa, mas mascara a ranzinzice e o ressentimento que fazem dele figura essencial para compreender a alma nacional.

Por sua vez, Monteiro Lobato padece no purgatório dos que pagam o pecado de ter pertencido ao seu tempo.

Condenado desde sempre por hostilizar o modernismo artístico, o criador do Sítio do Picapau Amarelo passou ultimamente a ser cobrado por seu racismo, inegável.

Apesar dele, Lobato foi um elemento progressista em sua época. Contradições do patriarcado nosso de cada dia.

Nada melhor do que o confronto direto com as fontes para corrigir as distorções de ambas as caricaturas: a do Lima bonzinho; a do Lobato lobo mau.

As três dimensões de suas personalidades saltam de cada página da correspondência entre os dois gigantes da literatura brasileira, publicada pela primeira vez em 1955 e reeditada agora em edição caprichada pela Verso Brasil, com organização da editora Valéria Lamego.

Além das cartas trocadas entre 1918 e 1922, coligidas e comentadas por Edgard Cavalheiro para a primeira edição, hoje rara, a nova traz acréscimos, notas explicativas, fartos cadernos de imagens e um posfácio, por Silvio Tamaso d'Onofrio, que recupera a figura de Cavalheiro, biógrafo, editor e operador dos bastidores literários.

RAFAEL CARDOSO é historiador da arte e escritor, autor de "O Remanescente" (Companhia das Letras)

O resultado é um livro que satisfaz não só aos especialistas como também prende e seduz o leitor comum.

O tom maior da correspondência entre Lima e Lobato é de admiração mútua.Dois letrados abaixo dos 40 anos: um do subúrbio da capital, o outro do interior de São Paulo; um padecendo doloroso declínio pessoal, o outro, astro em ascensão.

O editor Lobato reconhece em Lima a superioridade como escritor, chegando a aproximá-lo de Machado de Assis e dando-lhe até vantagem.

Lima vislumbra em Lobato um companheiro de ideias, alguém capaz de concordar tanto com sua admiração por Oliveira Viana quanto com seu desdém por João do Rio.

Mesmo no terreno político, no qual o "maximalismo" revolucionário de Lima Barreto antecipa-se em duas décadas ao flerte de Lobato com o comunismo, as diferenças são menores do que se poderia imaginar.

O que os une é algo mais profundo –a humanidade com que um enxerga o outro e ambos se compadecem.

Lobato narra sua busca frustrada pelo escritor em tascas e botequins: "Cheguei a espiar embaixo de certas mesas". Lima, bem-humorado, dá o endereço e se justifica: "Não sou quilombola".

Ao receber do editor a recusa de "Feiras e Mafuás", o autor demonstra-se compreensivo. Desvia seu lamento para sua própria cidade: "O Rio quer ficar uma capital de província."

É a última carta dele encontrada nos arquivos.

Pouco tempo depois, Lima desequilibrava-se da borda que ocupava na vida literária da sua época e caía de vez para a margem. Quase um século depois, seu texto insiste em perturbar quem busca nele verdades prontas e piedades. Ainda bem.

A CORRESPONDÊNCIA ENTRE MONTEIRO LOBATO E LIMA BARRETO
AUTORES Edgard Cavalheiro e Valéria Lamego (orgs.)
EDITORA Verso Brasil
QUANTO R$ 55,10 (152 págs.)

RAFAEL CARDOSO é historiador da arte e escritor, autor de 'O Remanescente' (Companhia das Letras)


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