Folha de S. Paulo


Crítica

Freyre e Bandeira veem mundo além do Recife em troca de cartas

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Gilberto Freyre lê livro de seu amigo Manuel Bandeira em cena do documentário 'O Mestre de Apipucos
Gilberto Freyre lê livro de seu amigo Manuel Bandeira em cena do documentário 'O Mestre de Apipucos'

Um dos mais amados poetas brasileiros se corresponde com o mais celebrado sociólogo do país.

O poeta é também tradutor de poesia, saindo-se bem em alemão, inglês e francês, entre outros idiomas; o sociólogo é professor em universidades americanas e inglesas, dialoga com H. L. Mencken e Andrew Joseph Armstrong.

Já se percebe que "Cartas Provincianas", a correspondência entre Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, pode exibir um título inexato, a menos que se aplique ao adjetivo um valor que é apenas uma parte de tudo o que revelam as 68 cartas agora reunidas: o conhecimento profundo, telúrico e sentimental de Pernambuco e do Recife, marcado na infância, no falar e na visão do mundo.

Conhecimento que porém se amplia gigantescamente nos dois correspondentes, fazendo-os compreenderem o Brasil a partir do lugar natal. Provincianismo como lente de observação, e não como imobilidade; aquele provincianismo que está em João Cabral de Melo Neto, por exemplo, quando o poeta descreve a Espanha a partir da sua vivência no mesmo Pernambuco onde os outros dois nasceram.

Provincianas ou não, cartas importantíssimas para quem se interessa pelos escritores, pelo modernismo, pela história literária, pela recepção de obras-chave da cultura brasileira, pelo Brasil.

Manuel Bandeira, 14 anos mais velho, morador do Rio desde muito cedo, assina 54 cartas ao sociólogo, que só deixava o Recife para viagens de trabalho e de docência.

Já em 1931 (a correspondência tem início em 1925), Gilberto Freyre pede a cumplicidade do amigo (por ele chamado de Baby Flag) na elaboração de trechos da sua obra: "Você terá de me ajudar com a sua cultura musical e a sua fina compreensão do assunto na parte relativa a canções de fazer dormir crianças, cantos escolares e às crianças que aparecem na literatura brasileira."

Estava aí, em elaboração, um estudo do futuro autor de "Casa-grande & Senzala" (1933). Publicado o grande livro, é Manuel Bandeira quem dá testemunho de que as vendas estão boas e é grande a repercussão no meio intelectual, por exemplo, a do antropólogo Roquette-Pinto, "classificando-o de obra monumental" e elogiando os trechos sobre miscigenação.

O poeta também foi leitor de primeira hora de "Sobrados e Mucambos" (1936), tendo o cuidado de comunicar ao seu autor os erros de revisão. Mas não apenas. Bandeira escreveu: "No prefácio da minha antologia dos românticos aludo ao seu capítulo sobre a mulher e o homem –ideal patriarcal da virgem pálida e lânguida, pondo em destaque [...] o homem fingindo medo da mulher para melhor dominá-la."

Nessa mesma carta, o poeta, aos 50 anos, comenta a edição privada de "Estrela da Manhã" –que não chegou sequer aos 50 exemplares e precisou ser vendida a amigos por subscrição.

A descrição da pobreza material surgirá em outras cartas, assim como a genuína admiração do sociólogo pelo poeta. Em 1956, Freyre escreveu: "Quando foi que o Recife produziu poeta que chegasse à altura do seu umbigo?".

A edição dessas magistrais e quase todas inéditas "Cartas Provincianas" é da professora Silvana Moreli Vicente Dias. Trabalho detalhado e especialmente notável pela fartura de notas, muitas das quais semelhantes a verbetes de enciclopédia.

Cartas Provincianas
Silvana Moreli Vicente Dias
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As cartas não ocupam 150 do total de 465 páginas do livro –e assim se percebe o espaço reservado a um aparato crítico da professora e a uma seleção de textos dos dois missivistas.

O conjunto pode ser excessivo ou dirigido a leitores especializados. Mesmo assim, ainda seria necessário saber, em carta de 1931, quem foi o historiador que dedicou a Gilberto Freyre um livro sobre a história da Carolina do Sul; ou, em missiva de 1934, qual seria o "catatau alemão" que Manuel Bandeira estava traduzindo para uma editora carioca.

São, no entanto, minúcias sobre um livro que já surge como mais uma fonte de referência para o estudo do modernismo e da vida cultural brasileira.

CARTAS PROVINCIANAS
AUTORA Silvana Moreli Vicente Dias (org.)
EDITORA Global
QUANTO R$ 69 (472 págs.)

FELIPE FORTUNA, 54, é poeta, ensaísta e diplomata, autor de "Taturana "(Pinakotheke).


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