Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Luiz Melodia subverteu o samba de forma primorosa

Luiz Melodia foi sambista a vida toda. No entanto, é difícil lembrar de uma música dele que seja um samba limpo, dentro da cartilha. Ele gostou de tal maneira da música negra americana que tudo já saiu de uma forma mesclada, com experimentação de jazz e levada soul.

Embora pensasse que criava sambas para honrar a tradição do Estácio, na verdade ele estava subvertendo o gênero de uma forma primorosa. Aproximar Billie Holiday do samba-canção parecia a coisa mais natural do mundo.

Seu repertório não era claramente dividido entre canções românticas e outras ligadas a uma temática social, como outros fizeram muito, caso de Gonzaguinha. Melodia falava de amor enquanto elegia personagens como a mulher que lava roupa todo dia.

Muitas vezes ele foi colocado ao lado de outros cantores e compositores nos anos 1970, numa galeria de supostos "malditos". Nomes como Jorge Mautner, Walter Franco, Jards Macalé.

Na verdade, com eles ele repartiu apenas o mesmo caminho para inserção no mercado musical: os festivais. Quando lançou "Pérola Negra", em 1973, correu um grande risco de se transformar numa espécie de Orson Welles desses cantores malditos. Como o cineasta americano que estreou com "Cidadão Kane", alguns pensaram ser difícil repetir um disco como aquele.

O álbum ainda impacta hoje. Parece um trabalho maduro. Na verdade, um jorro de ideias musicais inovadoras, de vigor juvenil, que fica disfarçado de obra refinada com muito esmero.

Três anos depois, ele contrariou qualquer expectativa negativa e lançou algo tão poderoso quanto a estreia. "Maravilhas Contemporâneas", além da excelência de suas composições, teve um respaldo de propaganda fortíssimo da gravadora Som Livre. A inclusão da faixa "Juventude Transviada" na trilha da novela "Pecado Capital", um dos maiores sucessos globais da década, fez com que, por um tempo, Melodia flertasse com o grande sucesso popular.

Mas ele sempre foi um artista indomável, não fazia concessões às gravadoras. Não permitia intromissões na escolha do repertório, nos arranjos. Sabia bem o que queria.

Assim, sua música de qualidade inquestionável foi migrando para um público cada vez menor. Assim como Tom Zé e Jards Macalé, orientou sua carreira para lançamentos fonográficos independentes e para shows em circuitos alternativos, bancados por um público majoritariamente universitário.

Nas duas últimas décadas, foi mais fácil encontrar o trabalho de Melodia em CD de coletâneas de sucesso do que em seus álbuns autorais. Hits como "Ébano", "Maravilhas Contemporâneas" e "Juventude Transviada", presentas em todos esses discos de antologia, ajudaram Melodia a ganhar novas gerações de fãs.

Em uma de suas últimas aparições públicas, no Prêmio da Música Brasileira do ano passado, cantou "Grito de Alerta", de Gonzaguinha, em dueto com Angela Ro Ro. O encontro de três "errados" da MPB. Gente que transgride, que faz diferente, que não se dobra. Gente que faz muita falta quando vai embora.


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