Folha de S. Paulo


'Se algo pode resistir através da arte, é a complexidade', diz Carlos Nader

Bruno Santos/Folhapress
PARATY,RJ, BRASIL, 28-07-2017: A mesa a contrapelo, no terceiro dia da 15ª FLIP (Festa Literária Internacional de Paraty). Na foto, Carlos Nader. (Foto: Bruno Santos/ Folhapress) *** FSP-ILUSTRADA *** EXCLUSIVO FOLHA***
O cineasta Carlos Nader em mesa do terceiro dia de Flip

O cineasta brasileiro Carlos Nader e a escritora chilena Diamela Eltit fizeram um elogio da complexidade na arte durante a mesa que dividiram na noite desta sexta-feira (28), na Flip.

"O documentário pode ser um contraponto ao jornalismo", disse o diretor de filmes como "Homem Comum" (2015) e "Pan-Cinema Permanente" (2008). "O jornalismo muitas vezes é feito a toque de caixa; nessa toada, a complexidade dança. Se há algo que pode resistir através da arte, é a complexidade. O documentário é um filme que se relaciona com o mundo, mas que deixa tempo para reflexão."

Jamais O Fogo Nunca
Diamela Eltit
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A autora, que acaba de ter seu romance "Jamais o Fogo Nunca" (Relicário) lançado em português, também se disse partidária da exigência formal. "Quando escrevi meu primeiro livro, a crítica disse não ter entendido nem sequer uma palavra. Me senti culpada."

Mas as ressalvas dos especialistas não a desestimularam. "Hoje, me refugio na liberdade que o sistema artístico oferece e pulo a parte normativa, que se aprende na escola, que ensina a ler desta ou daquela forma. A literatura é uma série de desobediências. Se não fosse assim, seria enfadonha. Busco outros horizontes, sejam eles sociais, literários ou políticos."

A conversa conduzida pelo mediador João Bandeira, bastante centrada na ideia de que a dupla de entrevistados compartilha uma linguagem "desviante, estranha, resistente" e na recepção do público a ela, pareceu não entusiasmar a plateia. A Igreja Matriz, longe da lotação máxima já no começo da mesa, foi se esvaziando até ficar com quase a metade de seus 400 lugares vagos.

Antes disso, durante a apresentação dos convidados por Bandeira, um espectador demonstrara impaciência com a extensão do introito (12 minutos), gritando "chega!" algumas vezes.

O fato é que era difícil entender por que a dupla havia sido colocada lado a lado. Os elos estabelecidos entre os processos criativos de Nader e Eltit soavam artificiais, apesar dos esforços da mediação. Tanto assim que não se estabeleceu diálogo orgânico, espontâneo entre eles.

CÓPULA DA ARTE

As intervenções mais inspiradas vieram do cineasta, para quem o artista "deve se comunicar, mas não fazer comunicação, como faz a televisão". Ele se definiu como "um fundamentalista da autonomia da obra de arte":

"A autonomia se manifesta antes mesmo que a obra exista. No processo de criação, você percebe a obra, sente-a vindo. É um jogo, uma cópula. Às vezes, só resta acatar o que ela diz. A gente deve satisfação a ela, não ao público".

Ele contou que, durante a preparação de seu primeiro longa-metragem documental, "Preto e Branco" (2004), sobre a questão racial, buscava obstinadamente um personagem racista. Depois de procura exaustiva, encontrou um cego que tinha horror a asiáticos. O pai dele se chamava Hitler de Lima, e a família morava numa certa rua Estado de Israel.

"Se fosse [um filme de] ficção, e houvesse um roteirista, ele seria demitido sumariamente", brincou Nader.
Também professora universitária e ensaísta de destaque (uma antologia de seus textos acaba de ser publicada em português sob o título de "A Máquina Pinochet"), Eltit comparou dois momentos de sua carreira nas letras. Quando assinou seu primeiro romance, nos anos 1980, a ditadura ainda vigorava no país. "Havia no Chile um burô de censura que determinava a possibilidade de publicação das obras. Mas nunca escrevi para o censor", disse.

Já na década seguinte, quando passou uma temporada no México (onde servia como adida cultural de seu país), ela afirma ter descoberto uma "forma menos visível de ditadura, o mercado, no qual o objeto, transformado em espetáculo, valia mais do que o sujeito". Buscou então trabalhar esse estado de coisas com as ferramentas da literatura.

Eltit disse que uma das questões que a movem hoje é a da igualdade entre os gêneros, das assimetrias entre homens e mulheres. "O sistema paga menos a mulheres porque acha que valem menos. E elas internalizam esse pensamento."


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