Folha de S. Paulo


Livro cataloga toda a obra encharcada de angústia do austríaco Egon Schiele

Os ossos não cabem dentro da pele. Ombros, cotovelos e costelas saltam para fora de um corpo feito trouxa de ângulos agudos. Em segundo plano, o rosto do artista, emoldurado por um braço raquítico, olha para fora da tela, em busca de algo ausente.

Egon Schiele assombrou a Viena do alvorecer do século 20 com autorretratos encharcados de angústia. Das 3.500 obras que fez numa vida brevíssima -28 anos e só uma década de trabalho-, 170 retratavam ele mesmo.

Lembrado como alma torturada, mártir, santo, profeta, rebelde, dândi pervertido, Schiele transformou o próprio corpo e o de seus retratados em tempestades de pele, olhos vermelhos, pelos pubianos e mãos que mais parecem garras esqueléticas.

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Autorretrato com Braço Torcido Acima da Cabeça', tela de 1910, de Egon Schiele, no livro da Taschen
'Autorretrato com Braço Torcido Acima da Cabeça', tela de 1910, de Egon Schiele, no livro da Taschen

"Sou todas as coisas ao mesmo tempo", escreveu o austríaco num de seus poemas. "Eu me vejo inteiro, mas preciso olhar também para o que eu quero, não só o que se passa dentro de mim, para enxergar de que substâncias misteriosas eu sou feito."

Na tentativa de destrinchar as tais substâncias e as forças contraditórias que moldaram a vida do artista, um livro monumental, que sai agora pela Taschen, revê toda a sua obra.

Em seis ensaios e 620 páginas com centenas de obras reproduzidas em detalhe, o volume, desses pensados para ostentar sobre mesinhas de centro, é dos mais completos e luxuosos apanhados da obra de Schiele, à altura da exuberância controversa do artista.

"O anti-herói de ontem se tornou a estrela de hoje", escreve Tobias Natter, editor do livro, no prefácio. "Egon Schiele deve sua celebridade não só a seu status de jovem rebelde, mas também aos paralelos tecidos entre ele e ídolos como James Dean e Jean-Michel Basquiat, que nos fazem notar novas camadas de significado em sua obra."

Tal como Dean e Basquiat, Schiele morreu jovem depois de uma vida intensa. Incompreendido e perseguido, mudou de ateliê por protestos de vizinhos ao longo da vida e chegou a ser preso, acusado de seduzir uma adolescente e por fazer obras vistas então como pornográficas.

Mas a suposta pornografia em Schiele, que nunca se esquivou da fama de maldito, tem menos a ver com a franqueza brutal com que retrata o sexo e a masturbação e mais com sua habilidade em plasmar com todas as cores um retrato da violência muitas vezes obscena de estar vivo.

Sua obra, que no início ecoa a ornamentação de Gustav Klimt, outro herói vienense, vai se tornando cada vez mais sintética. Num processo de depuração radical, Schiele construiu uma galeria de arquétipos do sofrimento humano. Seus homens e mulheres andróginos e esguios até não poder mais são dissecados contra fundos vazios, esbranquiçados -um universo abismal onde a dor se manifesta em queda de braço com a luxúria.

Um dos ensaios do livro lembra que o artista cresceu vendo os experimentos com radiografia na casa de um vizinho cientista, o que teria despertado seu interesse pelo registro de corpos esqueléticos, às vezes até translúcidos.

Mas uma leitura menos mecanicista diria que Schiele retratou com transparência total um mundo em transe. Viena, nos anos antes da Primeira Guerra, foi um laboratório da modernidade, de novas ideias no urbanismo, nas artes, na música e na literatura.

Os personagens sofridos de Schiele talvez olhem para fora das telas tentando entender para que serviu tudo isso.

EGON SCHIELE, THE COMPLETE PAINTINGS
AUTOR Tobias Natter (org.)
EDITORA Taschen
QUANTO US$ 200 (cerca de R$ 652, 620 págs.)


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