Folha de S. Paulo


Escritora chilena Diamela Eltit retrata vácuo pós-luta contra ditadura

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Romancista e ensaísta chilena Diamela Eltit, de 67 anos
Romancista e ensaísta chilena Diamela Eltit, convidada da 15ª Flip

"Nós tínhamos nos transformado em profissionais da clandestinidade, sabíamos como nos mover, em que estradas nos disfarçar, como vagar pelos espaços, fugir, fugir da cidade e atenuar o impacto dos nossos corpos nas ruas", diz a narradora feminina do romance "Jamais o Fogo Nunca" (Relicário).

O livro da chilena Diamela Eltit, 67, cujo título é emprestado de um verso do poeta experimental e cosmopolita peruano César Vallejo (1892-1938), trata de pessoas que viveram a resistência à ditadura Pinochet (1973-1990) e depois dela passaram a viver numa espécie de vácuo.

No incerto momento pós-ditadura em que vivem, perderam sentido o glossário que utilizaram em seu ambiente revolucionário –palavras como "célula", "organização", "base"– e também o modo como estabeleciam laços afetivos e se comunicavam.

O romance se passa praticamente dentro de quatro paredes, num quarto abafado em que um casal vive entre a nostalgia do passado e o vazio atual. Perambulam entre a lembrança de seus mortos e de seus erros, num eterno presente que parece infinito e cotidiano, e no qual parecem seguir juntos apenas porque estão vinculados às mesmas recordações.

"A grande inspiração foi 'Pedro Páramo', de Juan Rulfo (1917-1986), com sua ideia de um lugar onde todas as pessoas estão mortas e vivem esse eterno presente desesperançado, esse tempo em suspense", conta Eltit, em entrevista por telefone, desde Santiago.

E acrescenta: "Rulfo me ofereceu uma metáfora da figura do desaparecido que era então uma realidade no Chile da ditadura, todos conhecíamos pessoas que tinham sumido, e que não sabíamos se estavam vivas, escondidas, ou mortas".

Na obra, o casal compartilha um quarto e uma cama, e nela se revolve entre os traumas causados pelas privações, delações, prisões e até a morte de um filho, que não puderam levar ao hospital para não colocar em risco a "organização".

Com isso também vem a culpa, e a sensação de ter desperdiçado energia e algo muito valioso numa guerra perdida. "No tempo em que se passa o romance, eles já não entendem bem os parâmetros do mundo em que vivem e não têm mais a linguagem que usavam antes, ela não lhe serve para descrever o que sentem nem onde estão agora", explica.

A escritora é uma das convidadas da próxima edição da Flip (Festa Literária Internacional de Paraty), que ocorre entre 26 e 30 de julho.

Eltit viveu os anos da ditadura sem deixar o Chile, mas nunca participou da militância política, como muitos de seus colegas de geração. Seu modo de resistência se deu por meio de um grupo artístico, o CADA (Colectivo de Acciones de Arte), ao lado do poeta Raúl Zurita, do sociólogo Fernando Balcells e dos artistas Lotty Rosenfeld e Juan Castillo.

"Foi a melhor maneira que encontrei de atuar, pois não me via na luta armada nem na movimentação política dos grupos da minha geração. Mas o fato de os conhecer dá veracidade a esses personagens, porque sei como agiam, como falavam. E conheço muita gente que, ao perder a luta como razão de viver, ficou assim, parada no tempo", conta.

Não foi o que ocorreu com ela, que já nos anos 1970 começou uma carreira acadêmica no Chile, e que depois desenvolveria nos EUA e na Europa, dando aulas de escritura criativa em Cambridge e em Nova York.

Em seu país-natal, seguiu publicando ensaios políticos e sobre literatura, alguns deles reunidos em "A Máquina Pinochet" (e-galáxia), que agora também é publicado no Brasil, com tradução do professor de Princeton Pedro Meira Monteiro. Os textos tratam do "boom latino-americano", da ditadura e traçam um perfil da atual presidente, Michelle Bachelet, entre outras coisas.

"Prefiro escrever romances do que ensaios. Os ensaios são mais circunstanciais, um retrato do tempo em que foram escritos. Já nas novelas posso desenvolver mais fios condutores e uma ideia que fica no tempo", diz.

Jamais o Fogo Nunca
Diamela Eltit
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Sobre sua participação numa Flip que nesta edição expressará mais diversidade e dará mais espaço a questões raciais e de gênero, Eltit crê que se trata de um momento positivo, mas faz ressalvas.

"É positivo o que está ocorrendo com esse novo olhar para o diferente. Do ponto de vista do feminino, porém, não sou muito otimista, pois tudo é muito lento. Se levarmos em conta a questão dos salários, que é o índice mais mensurável, as mulheres ainda ganham menos que os homens em quase todo o mundo. E isso ocorre por uma razão muito simples, está instalada a visão de que a grande maioria das sociedades creem que elas, de fato, valem menos. E não vejo isso mudando tão cedo."

JAMAIS O FOGO NUNCA
AUTORA Diamela Eltit
TRADUÇÃO Julián Fuks
EDITORA Relicário
QUANTO R$ 39 (172 págs.)


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