Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Contos de Dulce Maria Cardoso debatem duplicidade e vazio

Zhang Liyun - 7.jun.2017/Xinhua
A escritora Dulce Maria Cardoso durante fórum de literatura em Lisboa, no dia 7 de junho
A escritora Dulce Maria Cardoso durante fórum de literatura em Lisboa, no dia 7 de junho

TUDO SÃO HISTÓRIAS DE AMOR (ótimo)
AUTORA Dulce Maria Cardoso
EDITORA Tinta-da-China Brasil
QUANTO R$ 79 (248 págs.)

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No romance "O Retorno" (2012), Dulce Maria Cardoso abordou a condição dúplice dos chamados "retornados". Portugueses que viviam em Angola e que precisaram sair por causa da descolonização, mas que em Portugal não conseguiram se sentir, por completo, portugueses.

Em "Tudo São Histórias de Amor", uma condição dúplice também aparece, e não só como questão identitária, mas também como forma e motivo variado dos enredos.

Nesses contos, a ação parece ter seu clímax justamente quando tal dualidade se percebe em desequilíbrio. "Tudo o que é visível em nós existe aos pares –direito e esquerdo– ou então posiciona-se de forma simétrica ao centro. Menos o coração."

No conto que abre o livro, a narradora –espelho da figura autoral– se pergunta sobre a desigualdade entre os lados esquerdo e direito do peito. Deste último, no lugar do coração surge "um vazio silencioso, indiferente à simetria que o resto do corpo parecia reclamar." Sobre esse espaço desabitado, a narradora pergunta: "O que existiria ali?"

De certa maneira, os 18 contos seguintes dão a ver uma tentativa de lidar com tal falta. Sem preenchê-lo, as histórias enfrentam o vazio instalado, duplicando-o.

A ficção trabalharia, assim, nos registros de um "eco do eu". E essa primeira pessoa está longe de gestos exibicionistas. Ao contrário, trata-se de uma subjetividade que se investiga convertendo aquilo que toca em ficção, inclusive, material autobiográfico.

Nessa direção, há um desfile de figuras duplas em desencontro. Por exemplo, uma escritora que matou a metade de si mesma e precisa lidar agora com o que sobrou. Há ainda a história dos gêmeos que, tendo amado uma mesma mulher, buscam sofrer o mesmo acidente para resolverem suas diferenças. E por aí vai.

O conto que dá título ao livro leva tal caráter dual mais longe quando narra em primeira pessoa a história de um cachorro morto que vai parar dentro da consciência da personagem-autora. O embate entre as individualidades se projeta sobre o enredo, que avança em registros entrelaçados.

O livro traz ainda alguns contos que encenam uma duplicidade relativa aos limites da ficção. Dois deles merecem destaque. Em "Não Esquecerás", a voz do texto, de forma literal, segura o leitor pela mão e o leva para dentro de um ônibus em viagem. Conhecemos um por um os passageiros, seus prazeres e anseios, até que bruscamente nos deparamos com uma notícia que nos lança para o lado de fora da narrativa.

Já em "O Coração do Meu Mundo", a narradora conta os percalços que sua mãe, ainda criança, teve quando morou no Brasil, problemas que comprometeram toda uma vida. Narrar, segundo ela, seria uma forma de tentar salvar a mãe. Mas como talvez seja tarde demais para isso, pelo menos que tal amor cresça a ponto de tocar a nós, leitores.

LEONARDO GANDOLFI é poeta e professor de literatura portuguesa da Unifesp


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