Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Minimalismo de obras se choca com retórica de protesto de 'Osso'

OSSO
QUANDO de ter. a dom., das 11h às 20h, até 30/7
ONDE Instituto Tomie Ohtake, av. Brig. Faria Lima, 201, Tel. (11) 2245-1900
QUANTO grátis

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Branco é a cor que mais aparece em "Osso". São brancas as páginas do livro de Nuno Ramos alvejado por uma bala, as delicadas tramas quadriculadas atravessadas pelos cabelos negros de Moisés Patrício, um quadro manchado de Pablo Lobato, as pedras portuguesas que se alastram pelo chão numa escultura de Jaime Lauriano.

Na mostra-protesto, contra a prisão de um jovem negro nas manifestações de junho de 2013 e depois por tráfico de drogas em circunstâncias nunca esclarecidas, o minimalismo domina. São gestos fortes, mas quase invisíveis.

Essas obras secas estão em contraste flagrante com a retórica incendiária em torno da exposição organizada por Paulo Miyada no Instituto Tomie Ohtake. É como se refletissem a mudez de uma sociedade diante de abusos contra negros e pobres que seguem um padrão tão regular quanto as formas geométricas do modernismo do país.

Divulgação
Cena de 'Y', filme de Anna Maria Maiolino na mostra 'Osso', no Instituto Tomie Ohtake
Cena de 'Y', filme de Anna Maria Maiolino na mostra 'Osso', no Instituto Tomie Ohtake

Há uma violência velada nesses trabalhos, tal qual as formas ao mesmo tempo dóceis e brutais paridas por nossas vanguardas. Os flagras de anônimos nas ruas de Buenos Aires num filme de Jonathas de Andrade confundem disparos de obturador com tiros de fuzil. O rosto em plano fechado de Anna Maria Maiolino em outro filme também grita de horror ao mesmo tempo em que esboça um sorriso.

Paulo Nazareth transforma o gesto do atleta olímpico negro Tommie Smith, que levantou o punho com uma luva preta no pódio da competição em 1968, em monumento acanhado, uma figurinha metálica apoiada em frágeis e minúsculas hastes de madeira a ponto de desmoronar.

Em equilíbrio precário, esses trabalhos dissecam a fragilidade e a vulnerabilidade do corpo -em especial o corpo negro, feminino e indígena- num país raivoso, de coronéis armados, bancadas da bala e indústrias de repressão e obscurantismo financiadas pelo dízimo dos fiéis.

Letras brancas contra um fundo preto de uma faixa criada pela artista Graziela Kunsch afirmam que "o racismo é estrutural", enquanto outro letreiro de Vitor Cesar, na saída da mostra, adverte que "artista é público".

Frente a frente, esses trabalhos se esforçam para dizer que esses artistas-ativistas não avançam sobre um campo incerto ou da esfera dos advogados e juízes. Em tempos sombrios e de escalada da violência, talvez seja mesmo no campo do protesto que as artes plásticas devem operar.

No caso desses artistas, uma espécie de "dream team" da arte contemporânea do país, o silêncio e a contenção formal -do "Nadaísmo", lembrança de Paulo Bruscky de uma mostra que fez no Recife deixando vazia a galeria, ou o minúsculo cubo de madeira plantado no meio de uma sala enorme por Cildo Meireles- desarmam o mais cínico e cético dos espectadores.

Estéril, nua e crua, "Osso" joga luz sobre um abismo que separa negros e brancos, mesmo partindo dos -poucos- negros e muitos brancos que dominam uma indústria cultural calada há tempos demais e que de vez em quando se desperta para reagir à barbárie.


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