Folha de S. Paulo


Catálogo recém-concluído lista as 3.400 obras do artista Leonilson

"Tinha o Leo público e o Leo privado. O Leo briguento e o Leo generoso. O Leo desesperado e o Leo romântico. Ele tentava fazer da sua intimidade a sua obra, sem nada a esconder."

Leo, descrito nessas linhas pelo amigo Jan Fjeld, é Leonilson, artista que construiu em desenhos, pinturas e bordados uma poderosa meditação sobre a solidão, o sofrimento e desilusões amorosas na ressaca da abertura democrática no país e no auge da epidemia da Aids, que tirou sua vida aos 36, em 1993.

Todas as arestas da personalidade de Leonilson agora vêm à tona num esforço monumental de catalogar sua obra. São três livros recém-concluídos que listam 3.400 trabalhos criados entre as décadas de 1970 e 1990.

Divulgação
Desenho sem título de Leonilson realizado em 1979
Desenho sem título de Leonilson realizado em 1979

O levantamento começou logo depois da morte do artista, mas ganhou fôlego com a última etapa da pesquisa, orçada em R$ 1,8 milhão e bancada pela Fundação Edson Queiroz, de Fortaleza. Nascido na capital cearense, Leonilson construiu quase toda a sua obra em São Paulo, onde viveu desde a infância, e mais tarde em temporadas nos Estados Unidos e na Europa.

No exterior, pesquisadores do projeto rastrearam centenas de trabalhos desconhecidos ou até mesmo dados como perdidos, entre eles uma gravura que Leonilson fez em Paris por encomenda do governo no bicentenário da Revolução Francesa, agora no acervo do Pompidou.

Sua obra, que passou por uma valorização exponencial nos últimos anos, também está nas coleções de outras instituições de peso, como o Reina Sofía, em Madri, e o MoMA, em Nova York.

Um efeito colateral da febre em torno de Leonilson, aliás, é o aumento no número de falsificações de seus trabalhos. A equipe de catalogação dos novos livros identificou cerca de 50 obras suspeitas, chegando a contratar até grafologistas para analisar assinaturas em algumas pinturas.

Outras 600 peças, arquivadas pela família e amigos no Projeto Leonilson, instituto responsável por seu espólio, são conhecidas, mas também não chegaram às páginas da publicação por falta de informação sobre seu paradeiro ou estado de conservação.

"Há lacunas e dificuldades, porque às vezes as obras circulam muito rápido pelo mercado", diz o crítico Ricardo Resende. "Muitas delas foram vendidas e nunca mais foram vistas."

Leda Catunda, artista e amiga de Leonilson, conta, no entanto, que "tudo foi escarafunchado". "Se uma coisa não entrou no livro, era um papel amassado", afirma. "Está tudo catalogado, fotografado."

'LEO NÃO AUTORIZADO'
Ou quase tudo. Ficaram de fora os escritos pessoais, a correspondência e as anotações do artista, que em geral não constam de catálogos raisonné, nome dado a esse tipo de compilação.

Mas, sendo Leonilson o primeiro artista contemporâneo do país -depois de modernistas como Volpi, Tarsila e Portinari a ser alvo de um levantamento como esses, qualquer ausência desperta suspeitas de possível censura.

Depois que o artista morreu, herdeiros chegaram a vetar a publicação de um livro com relatos de sua intimidade. Leonilson havia gravado uma espécie de diário em fitas cassete que deixou para amigos, dando origem a um volume até hoje barrado.

Incomodava à época a forma como o artista falava sobre sua homossexualidade, embora a intimidade entre homens fosse um assunto central de sua obra.

"Meu psiquiatra dizia para guardar as fitas e publicar só 50 anos depois", diz Ana Lenice Dias, a Nicinha, irmã do artista. "Era o luto que a gente precisava fazer. Agora a publicação já é uma possibilidade, mas precisa haver antes uma conversa."

No caso do novo catálogo, no entanto, ela nega censura. Um dos artigos no raisonné até comenta o episódio das fitas cassete, desse "Leo não autorizado", que também embasaram um recente documentário de Carlos Nader, dando a entender que a família vem se tornando mais aberta.

Diante do enorme volume de informação nos novos livros, herdeiros e especialistas envolvidos no raisonné esperam ainda que o foco da crítica, que privilegia os trabalhos da fase depois de sua descoberta da doença, possa mudar, lançando luz sobre outros lados de Leonilson.

"Essa é uma visão sem hierarquia, sem recorte", diz Pedro Mastrobuono, do Projeto Leonilson. "Sua obra vai passar por uma revisão, uma releitura, porque só o seu sofrimento não é um sinônimo de
talento ou exuberância."


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